quinta-feira, 4 de março de 2010

O PRIMEIRO DIA (baseado numa conversa com o professor Hugo Pinheiro)

Acordou com o rádio despertador tocando um velho sucesso. Sem abrir o olho, levou o dedo até o botão e desligou o aparelho, exatamente um instante antes da música durar o bastante para acordar sua mulher, que dormia encolhida no outro lado da cama. Só então levantou-se com o esforço característiico dos cheios de sono e colocou, sentando-se na cama, os pés descalços no chão do seu quarto escuro. Uma das únicas luzes, o letreiro digital do despertador informava que eram 6:20 da manhã. Ele se levantou, já desabotoando o pijama, e foi em direção ao banheiro, arrastando os pés.

Em segundos a luz do banheiro e a água do chuveiro inundaram seu corpo nu, permitindo que se visse que ele era um homem com sinais inequívocos de estar entrando na velhice. Seus olhos abertos miravam desinteressadamente os azulejos do banheiro, de cor bege, enquanto suas mãos faziam cega e acostumadamente o trabalho de pegar o sabonete e ensaboar-se, pegar o shampoo e passar nos cabelos grisalhos e ralos e etc. No final de tudo, ele desligou o chuveiro e pescou com a mão a toalha que o esperava fora do box. Secou-se. Em outros tempos, faria com desenvoltura a manobra de apoiar-se num pé só para poder secar o outro, coloca-lo fora do box, apoiar-se nele e secar o que ainda restara molhado. Agora saiu andando pelo banheiro chapinhando o chão com seus pés molhados e sentou-se na privada para seca-los.

Ao postar-se em frente ao espelho para escovar os dentes, deteve-se um instante para contemplar seu rosto, como fazemos quase todos nós diante do próprio reflexo. Os pensamentos que lhe passaram foram, como são os pensamentos, pouco sucetíveis a descrições, mas certamente envolviam a velhice que lhe chegava. O momento passou e foi sucedido pelo outro, absolutamente sem anormalidades, de escovar os dentes. A mão que não se ocupava dessa tarefa segurava a toalha precariamente enrolada em torno da sua cintura.

Ao sair do banheiro não se preocupou em apagar a luz, pois aquele facho contribuia para que a mulher acordasse, ela que já se contorcia de leve enquanto o rádio relógio dava as notícias do trânsito matinal, marcando em seu letreiro o horário de 6:35. Andou algo ruidosamente até o seu armário e já começou a escolher, antes de abri-lo, as roupas que iria usar.

A mesa do café o encontrou ainda de peito nu, era esse o cuidado que tinha com suas camisas, para não mancha-las de mel ou leite. Já estava, no entanto, com suas calças de cor cinza, que mesmo velhas preservavam certa aura respeitavel graças aos tratos extremosos que recebia do dono, ao usa-la, e da esposa do dono, ao lava-la. Ele comeu um pão com manteiga, tomou um copo de leite sem café, chupou uma laranja e levantou-se. Saiu andando em direção ao seu quarto e sua camisa. O jornal que estava do outro lado da porta da rua permaneceu intocado. O horário do trabalho não lhe permitia leituras matinais, apenas no final do dia.

Saiu de casa, e quem o visse saindo não advinharia em sua boca o recente beijo estalado dado pela esposa. O peso da pasta que carregava quase não era sentido pelo braço, que ja se acostumara absolutamente com ela. O velho retângulo de couro e seu conteúdo eram como que uma continuação do seu corpo. Checou no outro pulso o seu relógio, para conferir se eram realmente 6:55. Eram. Seguiu andando, subindo a calçada que aos poucos se tornava mais visivel conforme o sol subia e a iluminava. Sua boca começou a assoviar a melodia com a qual o rádio despertador o acordara. Um velho sucesso do seu tempo.

Sem que ele visse, embora o soubesse, em sua casa o rádio despertador marcou 7:00 quando ele finalmente parou de andar e chegou no ponto de ônibus. Parou sem se sentar, muito embora um rapaz uns tinra anos mais novo, vestido com roupas parecidas com as suas e segurando um pasta parecida com a sua, tivesse apressadamente se levantado para lhe ceder o lugar.

-O meu já está vindo - Disse apenas. Nem um minuto depois ele e o rapaz viram surgindo no horizonte o ônibus que, pela numeração, era o que ele pegava todos os dias, desde muitos anos, para ir ao trabalho. Sem que ele fizesse sinal o motorista parou, saudou-o com um sorriso e abriu a porta do ônibus. Ele não moveu um passo. Pela primeira vez seu olhar perdeu o ar mortiço que tinha desde o momento que acordara de manhã. Para a absoluta incredulidade do motorista e do jovem ao seu lado, ele disse, quase gargalhando:

-Hoje eu não vou!.

Hoje ele não iria. Não dirgiu mais a palavra ao motorista nem ao rapaz. Tampouco tornou a vê-los em qualquer momento de sua vida. Apenas virou seu corpo cento e oitenta graus e voltou a caminhar em direção de casa, para ler seu jornal e aproveitar o primeiro dia de sua aposentadoria.

Um comentário:

  1. ahahhaah
    funciona, o fim é bastante bonitinho
    me lembrava aquele filme 'mais estranho que a ficcao' sabes
    gostei gostei

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