quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O Terço do Pedro


Mais uma vez eu queria falar de eleições. Mas mais uma vez a pasmaceira delas foi atropelada por uma coisa mais interessante. Dessa vez o relato auto-biográfico de uma experiência completamente estranha que eu vivenciei ontem, aparentemente um "must" da Zona Sul do Rio que já rola a muitos anos, proporcionado pelo puro boca a boca, sem ajuda da imprensa.

Eu estou com a minha companheira. Quando eu e ela chegamos ali na igrejinha que tem em frente ao shopping da Gávea, a missa das 18:00 está pra começar. O padre vem se encaminhando quase entediado pro altar, e eu noto que os bancos estão estranhamente ocupados: Apesar de razoavelmente cheios de pessoas, possuem também lacunas ocupadas simplesmente por bolsas, chales, casacos... Todas essas coisas que o carioca (aliás, qualquer pessoa) usa pra "marcar lugar". É terça feira. Chove cântaros. O padre é um saco. A igreja não é especialmente bonita. E no entanto, a julgar pelos objetos, tem muita gente interssadíssima em estar ali.

É claro que eu não estava chegando totalmente desavisado naquele local. Se estivesse, eu sairia logo no começo da missa, em que o padre lê justamente a carta bíblica que diz que a mulher deve ser submissa ao marido. Acostumado com a pregação de Padres mais progressistas (mas só um pouquinho), esse papo me irita. Mas não. Diferente do cachorro, que só entrou na igreja por que a porta estava aberta, eu tinha uma noção do que me esperava ali dentro. Ou, por outra, eu achava que tinha.

Ao longo da missa (chatíssima e burocrática), a igreja vai enchendo. Muito. Praticamente indiferente ao sermão do Padre, dezenas de pessoas (a maior parte delas mulheres) vão ocupando os lugares antes preenchidos pelos chales, casacos e bolsas, e pequenos conflitos e picuinhas bem mundanos começam a se instaurar na casa de Deus. Aqui uma senhora diz que aquela outra senhora não pode guardar mais do que cinco lugares, ali aquela outra implora uma cadeira pro tio que tem Alzheimer. Aquela última parte da missa que vem depois da eucaristia, em que o padre pede as pessoas que elas se abracem na "paz de cristo", é sumariamente suprimida. O Padre (que, eu esqueci de dizer, tem um sotaque meio espanhol, como quase todo padre) sai de cena e ninguem nota.

A igreja não para de se encher. As pessoas vão se acomodando de todas as formas, e inclusive agora que o altar está vazio elas não se furtam a conspurca-lo também, sentando-se ali como podem. A conversa aumenta, a temperatura aumenta. Quando nos damos conta um coroinha já ligou um ar-condicionado no máximo e uma simpática senhora do nossao lado é obrigada a dialogar com o sujeito como se eles estivessem na fila da peixaria do Asterix. Os focos de barraco são contidos com dificuldade por uns poucos "psius" desentusiasmados. Apesar disso somos brasileiros, creio que todos estão felizes e satisfeitos com alguma bagunça. A igreja de repente vira uma grande sala de assembléia, não de Deus, mas do homem mesmo, com todas as suas miudezas e mesquinharias. Eu e minha companheira já estamos a muito tempo bem instalados em duas cadeirinhas de plástico na lateral da nave, mas nossa posição é súbitamente ameaçada por uma velha senhora meio alemã, que já se sentara, mas parece fazer questão daqueles lugares para uns amigos hipotéticos dela. Não cedemos. A igreja parece agora cem por cento lotada e ninguem tem ânimo de sair dali.

Já mencionei o quanto chove? Chove muito. Mais do que você está pensando, pense grande. Isso. Por aí. Pois bem, com essa chuva toda, eu de repente reparo que existem dezenas (serão centenas, meu Deus?) de pessoas grudadas nas janelas com vitrais da igreja. Rostos e mais rostos semi-encobertos por guarda-chuvas, que aguardam ansiosamente. Vinda sei lá daonde, no altar surge uma jovem moça chilena, muito bonita, que diz que veio falar sobre o corpo místico de Cristo. Moça, o que é o corpo místico de cristo? Nós somos o corpo Místico de Cristo, ela diz. Ela diz e ninguém parece estar escutando. Uma lojinha de souveniers instalada do lado de fora da igreja disputa atenção com a chilena e aos poucos vai-se notando que a loja dá mais ibope. Eu e minha companheira compramos terços (na verdade ela vai e compra pra nós, se não nossas cadeirinhas de plástico seriam ferozmentemente tomadas) e finalmente parece que a coisa já vai começar. A moça chilena termina seu discurso com muita paixão, mas é só burocraticamente aplaudida antes de sair de cena. Sobem agora no altar (tomando cuidado para não pisar nos fiéis sentados) uns dois ou três técnicos de som carregando pedestais, fios e microfones. Show Time. Pedro entra em cena já empunhando seu violão e eu quase ouço, mas acho que foi só a minha cabeça, alguém dizendo pra ele "vai lá e arrasa!".

Pelo que eu pesquisei depois, o terço do Pedro é um lance que já rola a mais de dez anos. O Pedro não é o Papa, não é nem padre, mas é seguramente POP. Bonito, arrumado, educado e inteligente, possui ainda a vantagem de tocar violão de um jeito muito mais autêntico do que a maior parte dos músicos de igreja. O repertório não instiga muito, são as mesmas canções água com açucar da chamada "renovação carismática", mas a voz do cara é agradavel de se ouvir e até empolga. Pedro fala algumas palavras à guiza de conselho, e de cara vê-se que ele tem incomparavelmente mais carisma do que o padre e a moça que o precederam.

A pessoa precisa mesmo de carisma para, uma vez por mês, fazer o que Pedro se propôe a fazer. Não é uma missa, não é um show, não é uma sessão de auto-ajuda, embora possua elementos dessas três coisas. O que acontece dentro daquela igreja super-lotada é, pasmen, uma das práticas mais antigas e fora de moda da religião católica: a reza do terço! A grande questão do "terço do Pedro" é o que leva tantas pessoas a gastarem mais de uma hora de seus dias atribulados (e debaixo de chuva, não se esqueça) reazando a bagatela de:

53 Ave-Marias
6 pais nossos
5 Mistérios
5-Glórias

E volta e meia um credo, ou um santo anjo....


O que leva?

A grande questão não está (não só, veja bem) no talento violonístico de Pedro. Não. O grande lance dele não é o ouvido músical, mas o ouvido Sobre-Natural: A coisa fundamental que eu escondi de vocês até aqui é que Pedro é conhecido por ter o Dom do Espírito Santo, ou seja, uma linha direta com Nossa Senhora que lhe permite dar mensagens, conselhos e até prever o futuro. As pessoas que abarrotam a igreja estão ansiosas (e no fundo eu estava ansioso também) para ouvir uma das muitas mensagens que a virgem deveria passar para Pedro. De repente toda a nossa fé no positivismo científico, todas as nossas críticas aos padres pedófilos, todo o nosso posicionamento moderninho de esquerda, tudo isso parece não ter importância. Estamos todos rendidos escutando Pedro e, a grande estrela, a Virgem.

E os dois não decepcionaram: Foram muitos os recados dados, alguns extremamente genéricos e outros tão específicos que continham até o nome da pessoa envolvida. Um homem com tumor no cérebro foi avisado de que o tumor era superficial. Uma jovem (que teve seu nome anunciado) foi aconselhada a se livrar de um namorado insistente. Um homem foi tranquilizado pela virgem, pois "apesar de sua música estar encaixotada em meio a processos enfadonhos, ela irá progressivamente crescer". Uma família foi avisada de que um membro seu que tinha uma doença grave iria se recuperar. Não sei bem o que passou pela minha cabeça nessa hora, mas acho que teve a ver com fé. Fé sincera na energia daquela gente rezando junto.

A coisa se dá de forma tão intensa e catártica que eu quase puxei um aplauso ou um "bis" no final, de tão empolgado que fiquei. Mas, mesmo que eu tivesse feito isso, não teria sido seguido, pois a maior parte dos fiéis está muito mais interessada em ir até Pedro. É dificilimo chegar até ele. Muitos parecem desesperados para saber se ele possui mais um recado de Nossa Senhora, algo que, quem sabe, diga respeito diretamente a elas. As outras pessoas vão, em hordas, saindo da igreja num papo animado. Nada daquele clima meio paradão de "pós-entorpecimento" que a maioria de nós experimenta depois de uma missa. Alguém arma uma mesinha com lanche na porta. Ouço duas moças combinando de se re-encontrarem ali mesmo no mês que vem, no próximo terço. Eu me pergunto se assisti a um milagre da magia, da religião ou simplesmente da sociedade. Ou de todos esses. Muitos enxugam os olhos, parecem ter chorado muito durante a nada cerimoniosa cerimônia. Dificil acreditar, no instante em que saímos porta a fora, que estamos no Rio de Janeiro, século XXI.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

GILBERTOS

Queridos amigos, ando desanimado em continuar a história das "peças de ouro". Ela está todinha na minha cabeça, mas ando sem saco de escrever. Nesse meio tempo pensei em escrever algumas coisas sobre as eleições, mas a quantidade de chatices que eu tenho recebido é tão grande e o nivel das campanhas está tão ridiculamente baixo que eu me desanimei disso também. Mas isso no fundo até que é bom, por que essa conjunção me animou a escrever sobre uma coisa que eu gosto muito mas sobre a qual eu raramente paro pra pensar de forma "analítica": Música! Espero que vocês leiam e gostem, especialmente por que, entre Ians, Gustavos, Suts, Brancos e Lauras, quase todos os leitores desse blog são violonistas.

















Gilbertos.

O Caetano escrevendo quase sempre é uma desgraça, mas ainda assim eu tenho o bom hábito de ler quase tudo que ele escreve. A pessoa, quando faz isso, pode encontrar algumas pérolas a princípio escondidas no mar de frases de efeito e achismos que é a sua prosa. Esses dias, assistindo pela milésima vez o DVD “Banda-dois” do Gilberto Gil (que é sobre quem eu quero falar, na verdade) eu me dei conta de que concordava em parte com uma frase contida no “Verdade Tropical” com a qual eu a princípio discordara veementemente. Cito aqui o trecho em questão:

“De todo modo, parece-me que minha escolha indica que o mais importante do violão brasileiro se passou nas revoluções aparentemente despretensiosas de autores-cantores que usavam o instrumento apenas para ‘se acompanhar’ do que no concertismo mais ou menos brilhante dos solistas”

Claro que eu, por princípio, deveria discordar do que foi dito. Sou filho de um grande violonista clássico, por conta de quem conheço alguns grandes nomes do meio, e entendo que essa frase despreza sumariamente a contribuição de gente como o Duo Assad, Egberto Gismonti e Carlos Barbosa Lima, só pra citar alguns dos meus solistas prediletos. Quando assisti o DVD do Gil, no entanto, compreendi finalmente o que o Caetano queria dizer. Mantenho minha posição de reverência aos solistas aqui citados, mas agora vejo que há na música popular, em que o violão é acompanhamento, um desenho tortuoso que faz toda uma trilha de relações possíveis entre os paradigmas COMPOSIÇÃO x INTERPRETAÇÃO, e que essa relação pode tranquilamente ter sido o fato “mais importante do violão brasileiro”.

Comecemos por João Gilberto. Não que a história do violão de acompanhamento pré-João Gilbertiana não seja interessante, mas é em João que toda uma tradição de meneios e floreios do violão de samba é finalmente sintetizada em uma estrutura ascética e claramente delineável: a famosa “batida” da bossa nova. João limou da estrutura rítmica de seu samba tudo o que não fosse absolutamente essencial, chegando a uma estrutura mínima tão potente que só pode ser explicada como um novo gênero musical (ainda que João tenha dito e repetido que o que ele faz é simplesmente samba). Violonista e cantor de virtudes únicas, João Gilberto não foi um compositor prolixo, assinando apenas “Bim-bom”, “Ho-ba-la-lá” e alguns temas instrumentais, sendo a sua maior virtude a sub-versão de músicas de outros compositores, que em suas mãos revelavam-se e adquiriam novas faces antes insuspeitas.

Despretensiosamente, vamos ouvir e pensar. Quais são alguns dos caracteres fundamentais do violão de João Gilberto? A batida, claro, é a pedra base. A harmonia complexa também não pode ser esquecida, e a relação sincopada entre a instrumentação e a voz talvez seja o terceiro fator mais importante. Esses três dados atravessam de forma vertical praticamente toda a obra de João, criando uma relação em que a música a ser tocada se submete a uma linguagem do músico. Sambas, Bossas, Choros, Boleros, Baladas, toques de candomblé... tudo isso, quando tocado por este músico, ganha a batida, as harmonias complexas e a síncope. O violão de João é assertivo, masculino: em João Gilberto, o músico prevalece sobre a música.

Ora, se pensarmos que João é reconhecidamente a grande influência de gente como Chico Buarque, Edu Lobo, Jorge ben, Roberto Carlos e os próprios Caetano Veloso e Gilberto Gil, e se pensarmos ainda que tudo o que aconteceu posteriormente na música popular brasileira teve influência de alguma dessas figuras, podemos assumir que João inaugurou uma tradição, e não há dificuldade de entender que muito disso se refletiu na forma de tocar o violão por parte dos brasileiros e brasileiras. Penso agora em três exemplos de seguidores claros de João: Jorge ben, João Bosco e Lenine, três violonistas que desenvolveram suas próprias batidas (todas geniais, diga-se), submetendo a elas um variado escopo de músicas.
Pois bem. No DVD “Banda Dois”, do Gil, eu me dei conta de que essa tradição tinha dado origem a uma contra-tradição tão poderosa quanto. Acredito que Gilberto Gil (que ouviu muito João Gilberto) tenha sido o grande responsável por essa mudança de paradigma, mas reconheço traços dessa contra tradição também no violão de Guinga, por exemplo. Mas o que seria essa contra-tradição? Explico-me. O DVD do Gil, que mostra ele quase o tempo inteiro sozinho com seu violão, é uma jóia para qualquer um que ame o instrumento: Gil enxerga a canção antes de enxergar o arranjo, submetendo este a esta. A cada faixa a sua forma de tocar muda radicalmente, sempre para incorporar soluções novas e inventivas que possam dar vazão a algum traço daquela canção específica. É impressionante que a forma curiosa de usar as cordas soltas em “Refazenda” tenha vindo da mesma cabeça da harmonia acompanhada de linha de baixo de “Esotérico” e é mais impressionante ainda que ambas sejam obras do mesmo violonista que compôs a mão direita nervosa de “expresso 2222”. O violão de Gil é passivo para que a música o oriente, assertiva. É feminino como a porção mulher da canção “Super-Homem”. É a música guiando o músico.

Compreendo melhor, a partir de um diálogo entre essa tradição e dessa contra-tradição do violão brasileiro, o momento que o instrumento vive hoje na música pop, nas mãos responsáveis de gente como Chico Cesar e Paulinho Moska. Esses, como o próprio Caetano Veloso, são violonistas que equilibram suas “batidas” pessoais com determinadas invenções guiadas pela música que eles estão tocando, gerando peças de rara beleza e grande inventividade. Se muitas dessas interpretações, como grande parte das linhas de violão feitas por Gil, são assombrosamente simples, só quem ganha é o amador que, como eu, busca beber nas águas dos grandes mestres. João Gilberto e Gilberto Gil, o masculino e o feminino, me fizeram entender que a música pop é sim um terreno muito fértil para a invenção violonística, seja com uma postura assertiva ou passiva diante da canção, e é inspirador seguir a linha evolutiva do instrumento por eles escolhido. Sem demérito algum para os nossos grandes solistas (viva os Assad!) eu passo a ver essa dialética entre os Gilbertos como, sim, o “mais importante do violão no Brasil”.