segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O FIM

Morto o sujeito, é costume que se o enterre. Costume ambíguo esse do sepultamento, pois que por um lado visa o ocultamento do que não se quer mostrar (tirar das vistas dos vivos os que já estão putrefando) e por outro consiste numa cerimônia alardeada inclusive no jornal, em que se espera que todos os conhecidos do morto compareçam. O fim da vida é assim um escuso mistério (sempre) mas é também um "festivo" desenlace de uma trama. No enterro, ritualiza-se o fato de que aquele ali já pode ter sua vida lida pelos outros: Já teve principio, meio e fim. O morto, e as coisas finalizadas, em geral, tem algo que aos vivos sempre é negado: a capacidade de exibir simetrias, harmonias, sentidos, caracterísitcas que nós, seres em trânsito, não temos.

O fim, portanto, é necessário pra que se note a beleza da forma. Enquanto uma coisa está acontecendo ela é mais como uma música, série de linhas melódicas que combinam harmonia ou tensão em momentos fugazes, e que tem uma beleza da qual podemos até nos tornar parte (como numa dança) mas nunca poderemos verdadeiramente apreciar com distanciamento. Para que haja esse tipo de prazer, a coisa tem que ter início, meio e fim.

Esse talvez seja um bom consolo para lidarmos (nós, vivos, seres ainda infindos) com a finitude das coisas e até de nos mesmos. É só depois do fim que viraremos beleza apolínea, linha de obra de arte. Dizer, no fim de um relacionamento, que "está tudo bem por que a vida continua" é por certo uma verdade luminosa, mas talvez tão luminoso quanto seja reconhecer que o relacionamento, agora finalizado, cristalizado, deixou de ser música ecoando para virar quadro a ser posto no nosso relicário pessoal. Na sala de estar da alma, podemos alardear "esse é um belo relacionamento que eu tive, e ainda combina com o meu sofá".

Por certo essa coisa de ser brasileiro, indivíduo essencialmente musical, me faz desgostar do fim das coisas, esse fator ordenador. Prefiro o calor amorfo do estar sendo do que o equilíbrio harmônico do foi. Escrevo esse texto (textos são interessantes, tem sempre que ser finalizados) para me adestrar a lidar com essa verdade indiscutivel: As coisas sempre tem fim.

Por outro lado...

Li a um tempão numa National Geographic que, segundo alguns cientistas, até o universo tem fim e tem a forma de um dodecaedro. Isso, longe de ser um triunfo das "coisas terminadas", um triunfo dos mortos, antes mostra a força dos vivos. Explico. Esses mesmos cientistas, se eu li certo, dizem que, se o universo tiver mesmo fim, todas as ondas sonoras produzidas desde sempre estão "emboladas" nas suas paredes, até hoje soando (acho que era por causa do princípio de conservação de energia, mas posso estar falando besteira). Por todas as ondas sonoras eu digo todas mesmo, inclusive as vozes de Jesus Cristo e de Júlio Cesar, o tiro que matou o arqui-duque ferdinando, o som da explosão do krakatoa, o meu primeiro gemido de choro quando eu nasci, um grão de areia friccionando com outro no deserto do Saara e até as teclas desse teclado de computador batendo nesse exato momento. Essas coisas, esses sons, não tem fim nunca, estão lá no fim do universo soando ao mesmo tempo, quem sabe harmonicamente ou talvez como um cluster de piano. Isso é muito louco, e se desautoriza alguns de nós a virem com esse papo de "acabou mas foi bonito", alegra tantos outros que acham que a gente vive não pelo passado, mas pelo estar passando. E daí que todas as coisas estão passando ao mesmo tempo?

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

AAA- Arnaldos Antunes Anônimos

Micro peça em um ato


N°15- Boa tarde gente... Eu sou o N°15, e estou a vinte dias sem fazer um jogo de palavras.

TODOS- Oláá, n° 15.

LÍDER- Conta a sua história pra gente, companheiro. Quer um bom-bom?

N°15- Tá bom

TODOS- Opa, opa!

N°15- Desculpa. Quero. (suspiro). Tudo começou, pra mim, quando eu tava ouvindo "Tocando em Frente", do Almir Sater, e saquei aquele trocadilho com manha/ manhã e massa/ maçã. Coisa leve. Achei bonito, achei que não fazia mal, e naquele mesmo dia escrevi um poema chamado "Carão na cara do cara". Não mostrei pra ninguem, fiquei na dichava. Mas quando o meu irmão achou o poema na minha mesa ele me dou um disco do Zeca Baleiro, disse que tinha a ver...

N°4- (sem conseguir se segurar) Achava que tava na dichava, mas tirou o cavalo da chuva quando acharam a chave...

TODOS- AAAAH

LÍDER- Segurança, tira esse cara daqui!

(confusão. retiram o n° 4).

LÍDER: Pode continuar, foi só um contratempo.

N°15- Bom... Eu comecei a ouvir Zeca Baleiro, né? Eu dizia pra mim mesmo que não tinha nada demais, tem um monte de gente que ouve Zeca a vida inteira sem desenvolver nenhum tipo de vício... Mas no fundo, sentia que era a porta de entrada para coisas mais pesadas. Escrevi um livreto de poemas para ler no sarau da escola que era assim "O babaca/ saca/ a faca/ e ataca/ o panaca/ Que sai/ De maca./ Mitose.

N°12- Putz... Pesado.

N°15- Foi quando um professor percebeu o meu caso e disse que podia me ajudar. Na verdade ele era um traficante do bagulho, tava inserido no movimento, e me deu meu primeiro livro do Arnaldo Antunes. (voz embargada) Daí eu senti que o negócio ficou sério.

LÍDER- Calma! Essas coisas é melhor falar mesmo. Bota pra fora.

N°15- Eu comecei a me afastar dos meus amigos, da minha família... Me entranhei no dadaísmo, comecei a ler os formalistas russos, ninguem mais queria ficar perto de mim. Acho que meu ponto mais baixo foi quando eu vendi o video cassete lá de casa pra comprar uma edição rara da fase concretista do Gullar. Por aí eu já fazia jogos de palavras sofisticadíssimos e percebi que podia sustentar meu vício vendendo eles, mesmo que acabasse viciando outras pessoas.

LÍDER- Você não se sentiu culpado?

N°15- Um pouco. Mas a vontade de consumir poemas concretos e jogos de palavras era mais forte. Meus pais tentaram me ajudar, e me mandaram pra uma micareta na Bahia. No começo eu achei que tinha conseguido voltar ao normal, mas uma noite, depois do show da Ivete eu escrevi isso aqui:

O can ivete
Da
Ivete
Rasga
a
Fresta
e
Faz
R
o
L
a
R
a festa.

Imediatamente eu fui expulso da micareta por excesso de intelectualismo. Nesse ponto eu fui convidado pra cúpula do tráfico de concretismo pelos fodões...

LÍDER- Quer dizer que...

N°15-
Pois é. Eu conheci o Augusto de Campos e o Décio Pignatari. Eu ficava lá na boca lendo as obras deles, foi uma viagem muito louca, parei de conseguir falar sem ser rimado ou dadaísta. Se eu queria um copo d'água pra minha mãe eu falava assim:

"Me dá esse co(r)po
Que tem dentro
Não o coentro
mas essa poça
Moça
Tu
Que tinha dentro
Não o coentro
Mas eu.

Árvore."


Mas a minha mãe nem falava mais comigo... Foi então que um dia o Augusto de Campos me chamou num canto lá e me falou que ia me dar um troço muito pesado, mas que eu ia gostar. E então ele me deu pra ouvir o "Araçá Azul", o disco concretista do Caetano... Bicho, aquilo foi demais até pra mim. Quando o disco acabou foi que eu percebi que aquilo, além de uma merda, era uma droga, e que eu estava viciado e precisando de ajuda. Foi quando eu encontrei os Arnaldos Antunes Anônimos, e percebi que não estava sozinho. Foi como uma luz na noite. (emocionado) Eu só queria dizer que essa é uma luta que a gente vai vencer junto, pessoal, a gente vai superar o nosso vício em poesia concreta. Fora a poesia concreta, essa cocôisa abjeta, ela que não se meta co'a nossa meta! Psicoprotomotriz do infeliz sem verniz, me diz! Agh... Socorro...Sóco Russo Corro, só corro, socorro, só cor, Rô, Socorro!!!!

LÍDER- Guardas!

domingo, 15 de agosto de 2010

mentiras

É que eu descobri
Que a gente mente muito
Que a gente mente sempre
Que a gente às vezes mente
Sem sentir

Quando eu reconheci
Que eu sinto muito mesmo
Mas é que eu me esqueci
Minhas mentiras a esmo
Por aí

Mas o que é que se faz?
Quando alguém sabe quem é
Quando alguém sabe o resto
Mas se esqueceu do texto
Lá pra trás?

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Para Laura Loureiro

Poema para namorada, o que vai contra o que me propus quando escrevi a minha descrição pessoal nesse blog. Coisas da vida.

Se a vida é mesmo uma senda
O amor é essa tenda
em que se mora.

Se a vida é a pagã peleja
O amor é a igreja
em que se ora.

Se a vida é chorar um arroio
O amor é olho
de onde se chora.

Se a vida é uma fruta no chão
O amor é o botão
Antes da flora.

Se a vida é, enfim, ir-se embora,
Vagar pelo mundo sem centro,
O amor é, pois, todo o dentro,
Pra que possa haver um fora.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

breve pensamento












"Bem peneirados, "Muito" e "Pouco" renderiam um único disco, melhor resolvido que os dois. Muitas das sobras estão no segundo, com insossas canções do fraco Johansen, "Oh my love, my love" e "Waiting for the sun to shine" (esta em parceria com o intérprete), e a arrastada toada "Saudade", que Moska escreveu com Chico Cesar, e Bethânia (em dueto com Lenine) lançou em 2009 no CD "Tua". Bastava aquela gravação. Como Tom & Vinicius lembraram há cinco décadas, chega de saudade!"

Retirado da resenha que o "globo" fez do disco "muito pouco" do Paulinho Moska. (O resenhista é um sujeito chamado Antônio Carlos Miguel)

A resenha, como de hábito, é muito ruim, e o disco, como de hábito é muito bom. Mas o trabalho medíocre do indivíduo que escreveu a resenha pode ser melhor percebido no final do texto, quando fica claro que ele só falou mal da música "saudade" para poder fazer o trocadalho do carilho com a canção de tom e vinícius. Todos nós estamos carecas de saber o quão irresponsável é a crítica musical no nosso país, mas essa eu ainda não conhecia: definir a opinião sobre uma obra apenas pela qualidade da piadinha que se pode fazer com essa opinião. Dá muita preguiça de argumentar com um texto desses, então eu sugiro que vocês que estejam lendo isso dêem um jeito qualquer de ouvir a música "saudade", que encerra o disco. É linda, do caralho, uma das melhores coisas que eu ouvi ultimamente, e por sí só destrói esse trabalho medíocre desse pobre crítico.

pra se ter uma idéia da gravação de "saudade" que está no disco, aí vai este vídeo, que está bem próximo (com o ônus de não ter a voz linda do chico cesar):

http://www.youtube.com/watch?v=ZWjXc70l3yw

Saudações a esse belo disco duplo, que devia ser duplo mesmo!

ps: quem conseguir, escute o blues "provavelmente você" também, uma música linda com uma segunda voz da porra.
vídeo dela (bem inferior a versão de estúdio, é verdade, principalmente por não ter a tal segunda voz):

http://www.youtube.com/watch?v=z11TWoUBTQI

domingo, 8 de agosto de 2010

Misture bem e deixe a massa crescer














Escrevo sob e sobre a FLIP 2010, daonde acabo de voltar. "Sobre" por que esse é o assunto do meu texto, e "sob" por que ainda estou SOB o impacto dessa grande FESTA (pois, ao contrário do que pode se pensar, o f de flip não é de feira) que anualmente celebra a literatura e a cidade de paraty, duas coisas velhas que resistiram aos avanços do tempo conservando a sua beleza e o seu poder.

O homenageado da vez foi o sociologo Gilberto Freyre, numa atitude que surpreendeu a agradou, visto que mostrou que a literatura brasileira é plural e disversificada, não possuindo baluartes apenas no campo da poesia e da ficção (genêros aos quais pertenciam os homenageados até então). Claro que quando eu digo "surpreendeu e agradou" só posso estar dizendo por mim, sem generalizar minha opinião, pois é fato que na verdade a escolha foi controvertida. A moda de "proteção de minorias" que atacou o pensamento sociológico brasileiro fez com que determinadas escolas (represenatadas na FLIP) vissem em trechos isolados e fora de contexto de Freyre afirmações de cunho anti-semita, racista, etc, etc, sem levar em conta que o todo da obra dele atua justamente como DES-recalcador do nosso racismo, pro bem ou pro mal trazendo a questão do negro e do índio para o centro do debate sobre a identidade nacional. Claro que, para determinados cientistas que se dizem cientistas humanos mas são absurdamente cientifcistas, cerebrais e positivistas, é muito fácil atacar um autor que escreve tão a partir de seus AFETOS como Gilberto Freyre. Mas tudo bem. A FLIP mostrou quem estava certo no decorrer dos quatro dias.
Quatro dias de osteniva libertinagem literária, com alta licensiosidade libidinosa entre as escolas, as sintaxes, os conceitos e as palavras. As mesas onde Peter Burke e Robert Darnton discutiram o futuro do livro fornicaram conceitualmente com os poetas de rua da periferia de são paulo que conseguiram imprimir suas obras em tiragens simples e baratas graças à mobilização comunitária e divulgar seu trabalho na FLIP. O futuro do livro, em algum lugar entre o I-Pad e e o cordel de rua, nascerá com certeza desse equilíbrio entre opostos, dessa DEMOCRACIA RACIAL DE ENCADERNAÇÕES. Ao mesmo tempo em que isso acontecia, o chato do Richard Dawkins, aquele darwinista MALA que falou na FLIP passada, foi devidamente contraposto pelo pensamento mestiço do ingles arianíssimo Terry Eagleton, teórico da literatura, que lembrou a todos nós que não só Deus sobreviveu aos atentados terroristas de Nitty como também está mais revolucionário e marxista do que nunca. Linha de pensamento jamais "clara", jamais "limpa", jamais "objetiva", mas inebriada pelo ópio do povo, que não alieniza mas dá um barato muito louco. Terry Eagleton conversou com Gilberto Freyre talvez sem saber, mas isso é comum de qualquer FESTA. Mas o grande elogio à MESTIÇAGEM, à MISTURA, às IMPUREZAS, aconteceu mesmo na figura do nosso poeta Ferreira Gullar, que contou como se foi ao mesmo tempo o pai e o assassino do concretismo asséptico dos paulistas e depois o poeta que gerou o POEMA SUJO, obra de nome tão sugestivo quanto Freyreano. Quando o poeta, já tendo revisitado toda sua vida na mesa com a graça de um Clown (coisa que ele se tornou), começou a recitar um longo trecho desse poema-obra-prima, a FLIP inteira se encheu de lágrimas. Ou foram só os meus olhos?
Muito ainda pra dizer, até agora eu não mencionei o originalíssimo show de abertura (essa dobradinha nestrovski/lobo) e nem os poderosíssimos saraus que rolaram pelas madrugadas, mas acontece que estou cansado da viagem, e eufórico demais pra escrever decentemente. Basta resumir dizendo que em tudo puderam ser vistos os signos da mestiçagem, do sincronismo e do entrecruzamento (por que não dizer logo fornicação?) de idéias. Tudo sobre o signo de Freyre, semrpe muito maior do que os que tentaram fazer dessa flip o seu mausoléu.
E olha que eu nem comecei a falar ainda da cachaça...


LISTA DE COMPRAS- FLIP 2010:

O MISTÉRIO DO SAMBA- Hermano Vianna
CACHALOTE- Daniel Galera & Rafael Coutinho
ALGUMA POESIA, Fac Símile da 1a edição - Carlos Drummond de Andrade (Org. Eucanaã Ferraz)
O PRESIDENTE NEGRO- Monteiro Lobato
O DIA EM QUE JAMES BROWN SALVOU A PÁTRIA - James Sullivan
VOO DE PRIMEIRA CLASSE- Mannu U.F. & J.R. MC
LIVRETO SEM NOME DO POETA MAURÍCIO MARQUES

Para o futuro, prevejo a compra de livros dos senhores Robert Darnton, Salman Rushdie e Terry Eagleton.