sábado, 29 de maio de 2010

Professor Olímpio contra o Horóscopo - PARTE 1. "O Jornal"

A pedidos, mais uma (ou mais meia, como se verá) do Professor Olímpio. Algo me diz que isso é o começo de uma saga.
Professor Olímpio dá aula de Topicos Elementares da Introdução á Teoria Ontológica na faculdade de Filosofia de uma importante universidade federal. Só que seu casamento com a filosofia já foram suas segundas núpcias, um amor de maturidade destinado a sanar suas dúvidas de velho, quem sabe uma conjuge destinada a cuidar dele no princípio de sua senilidade: Olímpio e a Filosofia nunca foram um par fogoso. Sua verdadeira paixão de juventude, aquela responsável por tantas descargas de adrenalina, ilusões e decepções, foi mesmo a política.
Olímpio, possuidor de farta coleção de quepes, blusas de botão e calças xadrez, além de cigarros hollywood, fora na mocidade um veemente militante da esquerda, e, homem estudioso que sempe foi, votou em branco em todas as eleições, desde aquelas para o centro acadêmico da faculdade até o pleito para presidente. Na velhice tornou-se moderado, rancoroso e com aquele amargor característico dos que viram quase tudo na vida e gostaram, vá lá, de uma ou duas coisas no máximo. Um dos poucos hábitos da mocidade que preservou no seu ocaso filosófico foi a ojeriza aos jornais de grande circulação("manipuladores! vendidos!"): Olímpio só lê "O Berro do Povo", um jornal desses que quando torce sai sangue mas que, há muitos anos, foi um quase importante jornal da esquerda.
Olímpio parecia não ter dado por essa mudança de linhe editorial até o dia em que seus olhos bateram numa coluna que até o dia anterior não era publicada: um horóscopo. Ficou sinceramente decepcionado com a novidade, pois como todo bom acadêmico considerava a astrologia uma besteira sem fundamento algum. Sentiu saudades do tempo em que aquele lado direito da terceira pagina era ocupado pelo colunista Bílio Bastos, articulista que depois pegara em armas no interior do Tocantins. Naquele instante, diante de seu farto café da manhã (ver conto anterior do Olímpio), Olímpio revisitou todo seu ódio diante do horóscopo, ódio esse que passa sim pelo cientificismo barato e pelo sectarismo de suas posições mas, como é sempre o caso de Olímpio, tem raízes muito mais profundas.
Olímpio, é preciso dizer, é do signo de Capricórnio. O leitor é desse signo ou conhece alguem que o seja? Capricórnio é o signo inventado, provavelmente, quando os gregos conseguiram onze signos excelentes, onze histórias zodiacais bacanérrimas e quiseram completar com doze... "pra ficar numero par". Sei lá. Já era fim de noite lá na grécia e os gregos tinham tomado muito vinho quando um babaca histórico soltou "Pô, bora fazer um bicho meio cabra meio peixe e fazer o cara que nasce nesse signo não ter nada de legal na personalidade dele". Todo mundo deve ter rido e topado. Malditos bêbados. Geraram pessoas como Olímpio, que sempre foi um amargurado na vida por ter amigos com signos legais como "leão" ou "escorpião", ou até o insossamente fofinho "peixes" e não poder partilhar da alegria deles. O capricórnio é o que? Pode perguntar pra um astrólogo.
-O Capricórnio é ambicioso com uma certa ganância, nada vai impedi-lo de alcançar seus objetivos, geralmente egoístas. Ele é racional, recluso (eufemismo para mal-humorado) e dissimulado.
Ah, legal, né? Que estimulante essa descrição. Imagine quantas mães devem ter querido "segurar" seus filhinhos na barriga para protege-los de nascer no famigerado mês de Janeiro, que faria deles capricornianos.
A mãe de Olímpio não teve esse cuidado e o pobre coitado nasceu justamente nos meados do primeiro mês do ano.
Pois Olímpio engoliu em seco a sua raiva e continuou comprando o "Berro do Povo", decido a ignorar o horóscopo e principalmente as referências ao seu signo. Claro que em poucos dias sua neurose o dominou e ele bateu o olho na parte proibida do jornal. Lá estava:


Capricórnio: Muito cuidado com a sua personalidade. Dome seus impulsos e evite magoar as pessoas com seus gestos descuidados e egoístas. Época ruim para relacionamentos amorosos e profissionais.

Olímpio ficou com uma raiva que há muito não o dominava (desde quando uma babá passsara com um carrinho de bebê por cima do seu pé, pra ser mais exato). Olímpio imediatamente catou seu quepe, seus cigarros e de pijama mesmo foi até a redação do jornal, decidido a tirar a limpo anos e anos daquela maldita opressão zodiacal. Pegou um ônibus morto de raiva, desceu dele quase espumando, entrou na redação do "Berro do Povo" assustando a pobre da recepcionista e berrou:

-Eu quero falar com a porra do astrólogo que faz aquela merda daquele horóscopo, caralho! E é melhor ele vir sozinho!

Por algum tipo dessas coincidências que só os astros explicam, o pobre do astrólogo estava exatamente deixando a redação naquele instante para ir almoçar, e ouviu os berros de Olímpio.

-Algum problema, senhor, eu sou o astrólogo do jornal. Alguma dúvida te atormenta, os astros podem ajudar em alguma coisa?

Olímpio olhou para ele. Seus olhos saltaram um pouco pra fora das órbitas e há testemunhas que afirmem que ele chegou a babar. Mas se o fez, se realmente deixou-se dominar assim pela raiva, num instante se conteve. Algo o fez racionalizar, provavelmente seu espírito essêncialmente classudo de professor universitário. Finalmente conseguiu falar.

-Quanto você quer? Pode falar, que eu tenho dinheiro. Quanto você quer pra começar a publicar coisas boas sobre capricórnio? Quanto você quer para reabilitar a imagem do meu signo?


CONTINUA NO PRÓXIMO EPISÓDIO

segunda-feira, 17 de maio de 2010

alô?

Mesmo sem receber um único mísero comentário desde sei lá quantos posts atrás eu ainda persevero nesse blog, conifante de que eu possuo leitores sim, só que todos leitores discretos que preferem não se pronunciar. Ok, sem problemas quanto a isso. Aproveito o ensejo, mudando de assunto, para exorta-los todos (quantos vocês são? três? cinco? mil? Laura, é só você?) para conhecer o outro blog para o qual eu contribuo, o blog da minha banda, o Pangaré Valente. www.pangarevalente.blogspot.com
Espero que seja do agrado de quem quer que queira agradar a sí próprio.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

MINHAS MEMÓRIAS ORNITOLÓGICAS DE IPANEMA

Lá onde eu nasci tudo era muito isso e aquilo, tal e qual. Da janela da sala se viam as janelas das salas dos prédios em frente, dos quartos e da cozinha via-se a favela do Cantagalo e, estranhamente, do basculante do banheiro você tinha uma vista perfeitamente emoldurada do morro Dois Irmãos sobre o Oceano Atlântico, o que no verão dava ao usuário do vaso sanitário um pôr-do-sol pelo qual muitos pagariam milhões. Lá onde eu nasci era uma Ipanema cheia de pássaros e sujeira, donde não faltavam pássaros sujos: Gaivotas sujas em “vês” assimétricos sobre o mar, galinhas sujas ciscando na favela e, os piores de todos, uma raça de pombos mutantes sujíssimos e tristíssimos, que na bizarra coloração de cinza arroxeado infestavam (até hoje infestam) a cidade e especialmente aquele bairro. Aquela Ipanema.

Um dia a empregada me disse que no alto do morro, pra depois dos barracos, morava um gavião. Não acreditei.

Um outro dia, noite de tiroteio, uma bala entrou pela janela e acertou a cama do meu tio, perfurando o colchão bem no ponto em que, não fosse noite de sexta feira, sua cabeça estaria dormindo. Uns meses depois explodiram uma granada por lá, e eu, que tinha ido dormir na sala pra não ter o mesmo destino do colchão do meu tio, vi a luz daquela explosão refletida no prédio em frente. Mais um tempinho, eu na segurança da casa de campo em Paty d’Alferes, vi a minha rua ser capa do globo, por motivo de mais um dos tiroteios. Foi a gota. Matamos a vida que tínhamos lá em Ipanema e fizemos nascer outra em Copacabana, a vizinha mais velha, mais kitsch e mais cheia daqueles pombos.
Lá em Copacabana os pombos não têm medo quando você corre atrás deles e eu, sem ter muita consciência, virei adolescente: ganhei penugem e criei meu primeiro par de asas. Ipanema, sua claridade acachapante, virou uma burguesa chic à ser combatida (tive formação vicentina) , um lugar para nunca mais voltar. É claro que, na curiosa geografia de mim e dos meus, o posto nove era como se não fosse Ipanema. Era permitido para banhos de mar, contemplação das fêmeas e, no caso de alguns mais corajosos que eu, experiências com os baseados que por ali circulavam. Como chegar até lá, se Ipanema era território proibido? Nós, gaivotamente, íamos voando.

(Às vezes, mijando no mar, eu olhava pro morro Dois Irmãos e me sentia no velho apartamento).

Passaram-se os anos e eis-me aqui, de volta a Ipanema. Não na condição de morador, mas namorando uma menina do bairro. Finalmente, depois de tantos anos, Ipanema adquiriu para mim as formas de mulher curvilínea que ela tem para o resto do mundo. Já não mais a Ipanema da minha infância, visto que a praça Nossa Senhora da Paz está irreconhecivelmente suja e a Praça General Osório está irreconhecivelmente limpa, nem a Ipanema burguesa neo-liberal, podre, retrógada etc. etc. etc. O bairro agora é onde mora o amor e onde moram os amores. Ipanema Zen, clichê do bem, bossa-nova cool. Como a namorada mora na cobertura, não há pombos.
Uma noite dessas, eu estava na varanda da namorada, contemplando (longe e segura) a pacificada favela do Cantagalo. Obriguei-me a reconhecer como de noite ela é de fato bonita, ouro sobre o azul escuro. Talvez como um rito de passagem da vida, ou, por outra, um sinal de tréguas, ou ainda por motivo nenhum, do nada, aconteceu um gavião. Pousado no gradil do prédio em frente. O gavião. Sereno, altivo, majestoso (acho que castanho), era um bicho que sei lá como se descreve. A antítese de um pombo, quem sabe. Fiquei quietinho, espreitando seus poucos movimentos até que ele abrisse as suas asas e sumisse na noite, rei do bairro, planando na direção do seu ninho no alto do morro. Não me dirigiu palavra, acho que se falasse algo diria “nunca mais”, mas eu, que nem sei por que comecei esse texto, não saberia o significado disso. Daí simplesmente fui lá voando atrás dele.

sábado, 1 de maio de 2010

GELADEIRA- conto inicial das aventuras do professor Olímpio.

GELADEIRA



Surpreendi-me com o quão cheio estava o seu carrinho de compras. Ele não se contentava em levar um pote de geléia, tinha que levar logo três. Uma de morango, outra de maracujá e outra de uva. Alface, tomate, cenoura, coca-cola, cerveja, água de coco, sorvete de creme (três potes), maminha, filé, leite condensado, manteiga, chocolate e laranja. Quilos e quilos de comida perecivel, que se acumulavam no carrinho de tal forma que só com muito esforço ele, que já devia ter bem uns setenta anos, conseguia empurrar tudo até o caixa.
Voltei para os meus vinhos. Selecionei dois chilenos que andavam me interessando, um legítimo francês e fui pagar no caixa. Lá, o velho discutia com o atendente.
-Como você aí acha que eu vou conseguir carregar isso tudo até em casa? Sabe lá o que é ter setenta e sete anos, meu filho?
-Perdão, senhor, mas aos domingos não temos serviço de entrega a domicílio.
-Ah, agora eu, que paguei por isso tudo, não vou poder levar pra casa! Mas que absurdo! Desrespeito com os mais velhos!
-Sinceramente, gostaria muito de ajuda-lo, mas não sei como...
-Ah, não sabe como? Pois eu lhe digo como, moleque! Chame aqui o gerente!
Não é que eu estivesse com pressa, mas não queria gastar o meu tempo de ócio ali na fila do super-mercado. Se o gerente viesse, lá se iam dez minutos com as pernas esticadas naquele lugar que cheirava a verdura e coisas congeladas, e não era bem aquilo que eu tinha em mente para o meu domingo.
-Com licença...
-Desrespeito...
-Com licença, eu posso ajuda-lo a levar as compras pro seu apartamento, se o senhor não morar muito longe.
Pensando bem, não sei bem por que fiz aquilo. Não gosto muito de velhos, especialmente aqueles que se vangloriam de sua velhice,como aquele, que ostentava com um certo orgulho a barba mal feita e o nariz ranhento tão característicos dessa idade. O mais constrangedor de tudo foi ver o velho dando uma espécie de lição de moral no atendente, dizendo que eu sim era um jovem que sabia tratar os idosos. Fiquei terrivelmente envergonhado.
Finalmente ganhamos a avenida. Eu, o velho e as cinco sacolas plásticas abarrotadas de comida perecível. Os vinhos eu deixei para buscar depois, dadas as circunstâncias. Como o conteúdo das sacolas tinha acabado de sair do refrigerador, elas suavam. Pingavam no chão e iam fazendo um caminhozinho na calçada quase deserta daquele domingo. Era comida demais para um velho só. Como eu já estava lhe fazendo um favor, não me senti intimidado de perguntar coisas.
-De quanto em quanto tempo o senhor faz compras?
-A cada semana. Geralmente no sábado, mas como meu gato morreu ontem eu tive que vir hoje.
-Isso é comida demais pra uma pessoa só comer em uma semana. Principalmente um velho.
-Você não entende nada.
-Não mesmo.
-Eu sou professor universitário, rapaz.
Professor e velho. Difícil um tipo que pudesse me despertar mais antipatia.
-Professor Olímpio! Artigos pra escrever o tempo todo. Aulas pra preparar! Cartas, teses... É preciso estar com o cérebro sempre ativo e funcionando bem para essas atividades. Sempre! O dia em que eu me sentir menos lúcido do que eu me sentia aos vinte anos eu...
Lá ia minha cabeça longe, nas pernas da mulher que cruzara conosco. Nenhum desrespeito ao velho, era um mecanismo instintivo para que eu não me irritasse ainda mais com ele. Já me arrependia muito do favor que eu estava lhe fazendo. Quando a mulher cruzou a esquina e eu não tive mais saída, não me agüentei e perguntei:
-Mas o que isso tem a ver com esse monte de comida?
-Eu ia chegar lá, eu ia chegar lá...
Sob o sol da manhã, eu, como as sacolas, começara a suar também.
-É que eu adoro abrir a geladeira pra pensar. Acontece com algumas pessoas. Nos momentos em que falta a inspiração, basta que eu abra a geladeira durante uns cinco minutos para que uma idéia logo brote, assumindo forma na fumaça de gelo que sai das prateleiras...
Dessa vez nenhuma mulher passou, é que eu simplesmente não me lembro desse pedaço da fala do velho.
-Depois de mais de trinta anos disso eu descobri que a qualidade das idéias que me vem nessas horas é proporcional a exuberância da geladeira. É por que eu tenho que mantê-la sempre abarrotada de coisas coloridas.
-Pelo bem da ciência.
-É!
-Anh.
Finalmente chegamos a portaria dele. Ele me disse que dali o porteiro assumia. Apertei a sua mão e, com um pouco de pena do porteiro, tomei o rumo de volta ao super mercado para buscar as garrafas de vinho. Eu, que não queria perder dez minutos na fila do super mercado, acabara perdendo uns vinte ouvindo aquele falatório irritante do professor. Enquanto fazia de volta o caminhozinho de pingos que havíamos deixado eu comecei a imaginar o cheiro que deveria ter aquela geladeira. Um monte de coisa devia apodrecer ali dentro, só pra clarear as ideias do velho. Qualquer dia desses ele ia abrir aquela porta e sofrer um envenenamento ou algo do gênero, qualquer um poderia perceber isso. Aliás, o gato dele provavelmente morrera exatamente comendo alguma daquelas coisas podres. Existe muita gente realmente nojenta no mundo.