sexta-feira, 23 de novembro de 2012

NÓS EM JERUSALÉM




Escrevo pensando em recentes acontecimentos da minha vida pessoal, e em um livro que eu li também recentemente. Sobre os acontecimentos não cabe ainda comentário, mas o livro em questão é Eichmann em Jerusalem, um longo ensaio jornalístico de Hannah Arendt sobre o julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann, arquiteto do holocausto. O momento chave do texto, creio, é aquele em que Arendt nos fala dos juízes e do público do julgamento, que, ávidos e curiosos para ver um “gênio do crime”, ou “uma mente extraordinariamente maligna”, se deparam na verdade com um burocrata medíocre. Segundo o Arendt, tudo o que Eichmann foi capaz de dizer em sua defesa passou por repetir que “seguia ordens”, ou "fazia o mesmo que todos". Incapaz de formular um pensamento por si mesmo, o responsável pela morte de milhões de judeus apenas repetia as palavras de outros e citava a todo momento jargões e frases feitas. Muito embora o personagem clássico do nazista na ficção seja alguém extremamente cruel, frio e sádico,  Arendt compreende que a grande maldade do nazista da realidade é a recusa em pensar por si próprio. Dessas conclusões a autora cria o conceito de “banalidade do mal”, que eu gosto de pensar que também pode ser entendido como “mal da banalidade”.
Vejo da seguinte forma: Pensar que o mal depende de uma mente deturpada, apodrecida, diferente das comuns é uma forma de, uma vez que sempre nos julgamos “normais”, nos distanciarmos da possibilidade de nós mesmos praticarmos o mal. Daí a facilidade com que, ao longo da história, facilmente atribuímos o mal aos mais diferentes dentre nós, marginais por sua raça, sua renda, sua orientação sexual, sua saúde, ou mesmo suas opções estéticas. Não é preciso muito para que se condene alguém que, entre pessoas de terno, use uma roupa não usual. Ou que, entre professores de determinado saber, ensine algo diferente. Como vivemos em tempos mais civilizados que o de Hitler, todos se apressarão em dizer que nada tem contra essa pessoa “diferente”, mas suponhamos um caso fictício, passado num mundo e numa época exatamente iguais aos nossos, e o meu ponto ficará mais claro.
Suponhamos um personagem que seja diferente dos demais, cujo nome seja justamente Diferente. Imaginemos agora que surja um rumor, ou até mesmo uma denúncia, de que Diferente tenha cometido um crime. Nesse momento, repentinamente se descortina algo que antes estava velado: quando acusado, Diferente não terá a mesma presunção de inocência que os outros, pois antes que os dispositivos legais sejam acionados, a opinião pública já o terá execrado.  Mesmo Diferente sendo dotado de plenas faculdades físicas e mentais, não será necessária a sua presença para que ele seja julgado, diagnosticado e nomeado um crápula. E quem fará isso não será uma entidade sem nome ou rosto, antes o farão seus pares, agindo como pequenos Eichmanns. Estes se apressarão em corroborar o discurso comum e colaborar contra Diferente. Não por algum senso de justiça, mas por que é fácil fazê-lo. Muitos dirão que, embora tenham ficado quietos e tenham até mesmo sido amigos de Diferente, no fundo sempre souberam que havia “algo estranho com ele”. Puxarão pela memória até encontrar um fato qualquer que, agora sob nova luz, parecerá prova cabal de que o Diferente é um ser perigoso e maligno. Outros, covardes entre os covardes, mesmo compartilhando da diferença que Diferente possui, serão os primeiros a mudar de lado e incorporar-se ao coro dos comuns. Fatos que tornem mais provável a culpa de Diferente virão à tona, e outros que pareçam inocentá-lo serão diminuídos. O que a todo custo se tentará evitar, claro, será dar voz ao acusado. Num mundo de Eichmanns que repetem frases feitas e falas prontas, não se pode correr o risco de que Diferente possua um discurso diferente.
Eventualmente, embora todos os prognósticos apontem para o contrário, a situação pode resolver-se de forma favorável a Diferente. O mais provável é que Diferente seja penalizado, excluído da sociedade e preferivelmente morto, mas também pode ser que se prove que Diferente não tenha cometido o crime, e sim outra pessoa. Pode ser, ainda, que se prove que o crime em questão não tenha acontecido, não passando tudo de uma mentira inventada por alguém. Nesse caso, o mal para de emanar de Diferente e passa a emanar do mentiroso. Imediatamente a única suspeita possível para a resposta da pergunta “onde está o mal?” torna-se a pessoa que inventou o rumor, ou que fez a falsa denúncia. Há os que vão pensar que essa pessoa sim é o gênio do crime, a mente podre e depravada que o tempo todo se escondera. São burros os que pensam assim, e estes colaboram para o estabelecimento de um ciclo vicioso. Não existe a figura do gênio do mal.
Não me entendam errado. Naturalmente existem coisas como a crueldade e a ambição desmedida, mas elas não são características de mentes doentes. Se há hospício, somos nós os dignos dele, como concluiu o famoso alienista de Machado de Assis. A origem do mal é a mesquinharia cotidiana de cada um, a nossa burrice, nossos preconceitos, a facilidade com que aderimos a um discurso que pareça confortável, por absurdo que seja em essência. Por isso elegemos pessoas que sabemos estarem mentindo, por isso acreditamos em pseudo-cientistas que não apresentam evidências e por isso contorcemos nossa fé em obediência a sacerdotes que sabemos não ter fé alguma. Por isso, principalmente, obedecemos quem não teria o direito de mandar em nós e por isso, diga-se logo, passamos mais tempo do nosso dia obedecendo do que fazendo qualquer outra coisa. Na pequena história inventada por mim nesse texto, mas tão real quanto cotidiana, aquele que inventou um falso rumor sobre Diferente não é mais mal que aquele que somente disse “eu sempre soube que havia algo estranho”. São ambos indiferentes, e iguais.

Eichmann.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

A Ideia, O Taxista e O Meu Rio.


 
Por Breno Góes, baseado em fatos reais


Como as pessoas procuram taxis, as ideias procuram pessoas de quem possam ser passageiras. Calma, eu me explico. É que, recentemente, assisti ao filme documentário The Mindscape of Alan Moore, uma entrevista com o grande quadrinista e mago inglês, e em dado momento ele comentou sobre como a ideia da máquina a vapor, jamais concebida por ninguém, de repente pipocou quase ao mesmo tempo nas cabeças de quatro pessoas em pontos diferentes do mundo, em pleno século XVIII. Outro inglês de quem eu sou fã, o romancista Terry Pratchett, elaborou em um de seus livros, já não lembro qual, um modelo segundo o qual as ideias seriam pequenas partículas que vagariam pelo espaço a procura de cabeças em que elas pudessem entrar e se fazer reais. O que esses dois ingleses dizem, sobre ideias como entidades com vida própria, Ideias com I maiúsculo, de repente fez todo o sentido pra mim, numa noite primaveril, quando eu pensava em Freixo, Paes e na cidade do Rio de Janeiro. Calma, eu me explico.

Fazia vinte dias  que acabara a campanha eleitoral na cidade do Rio, e eu me perguntava por que diabos Eduardo Paes conseguia ser tão popular entre nós cariocas, mesmo com sua flagrante simpatia pelo autoritarismo, até que precisei tomar um taxi. Precisei tomar um taxi, diga-se, para chegar na casa do meu amigo Arthur Aguillar, que é membro ativo do Meu Rio. Meu Rio, aliás, é um negócio que, se você não conhece, precisa urgentemente googlear. Quando entrei no taxi, assim que mencionei o endereço pra onde eu queria ir, o motorista me disse, sem qualquer motivo aparente, justamente como se uma Ideia tivesse acabado de entrar pela sua orelha:

-Ainda bem que o prefeito se reelegeu. Ele é muito bom.

Ora, não bastasse a minha militância ferrenha por Freixo, eu tenho por hábito encorajar taxistas a falarem mais, já que quase sempre algo se aproveita de uma conversa com esses profissionais, e nesse dia não foi diferente. Já influenciado por Moore e Pratchett, eu queria entender melhor aquela Ideia que, depois de vagar vinda de não sei onde, entrara na cabeça do homem no mesmo momento em que eu ia entrando no seu taxi. Imediatamente contrapus a afirmativa dele brandindo algum dos inúmeros problemas da gestão Paes. Não lembro se eu falei das remoções, da especulação imobiliária, das licitações dos ônibus e vans ou das associações flagrantes de Paes com milicianos. Pode ter sido qualquer uma dessas coisas. O que eu me lembro é que ele me respondeu com um outro (suposto) ponto positivo da gestão do prefeito, que eu contrapus com mais um negativo, e assim por diante. Até que em dado momento, quando era a minha vez de falar, lembrei a ele do problema com os usuários de crack. E aí a Ideia que se entrincheirara dentro do motorista de taxi finalmente disse a que veio:

-Ah, os cracudos! Eu também acho que ele está fazendo errado com os cracudos! Eu tenho uma Ideia sobre o que fazer com esses cracudos. Não tem que matar não. Sabe o que que tem que fazer?

-O que?

-Você já viajou de carro pelo estado do Rio,  ou por qualquer estrada do Brasil?

-Já.

-Então! Já viu quanto espaço livre que tem? Esse país tem espaço livre de sobra! Olha só, tem que pegar um descampado desses, e construir um negócio que seja impossível da pessoa lá dentro fugir. Im-po-ssi-vel. Daí bota esses cracudos pra trabalhar aquela terra lá. Trabalhar, entende? Que nem eu e você. Mas tem que trabalhar direito, senão leva ferro.

Nada se compara ao prazer de ver uma Ideia nua, arreganhada mesmo, em toda sua beleza e feiura. Respondi:

-Ah, mas já tentaram isso antes, na Europa.

-Ah é, onde?

-Na Alemanha.

-E lá deu certo?

Não sei se a Ideia dentro da cabeça do taxista estava só se fazendo de cínica. Decidi responder com sinceridade. Pensei em Bush, na Candelária, no Carandiru, em Khadaffi, Pe. Lauro Palú, Cabral, Paes e pensei também, por outro lado, no Meu Rio, do meu amigo arthur Aguillar, aquele negócio que você já devia ter procurado no google lá no início do texto. “Deu certo?”, a pergunta ecoava.

-Depende. De certa forma.




LINKS:

MEU RIO: http://meurio.org.br/


THE MINDSCAPE OF ALAN MOORE: http://www.youtube.com/watch?v=KPzLgQv6EjY
TERRY PRATCHETT: http://www.terrypratchettbooks.com/

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

TRILOGIA TRICOLOR- PARTE I

PRIMEIRO CAPÍTULO: VERDE (por que não está maduro)

24 de dezembro de 1999.

Rogério e Carlos eram seus nomes, ainda que, na época em que essa história começa, fossem mais conhecidos como Roger e Carlinhos.  Ambos contavam por aí uns 20 anos.Tinham se visto muito no ano anterior, ambos com estrela vermelha no peito, panfletando em Ipanema por um candidato que nem chegara ao segundo turno. Agora, ambos tinham comparecido à mesma e insólita ceia na véspera de natal na casa de uma amiga em comum, aliás chamada Ana. A ceia era insólita por comemorar, além do natal em si, o falecimento do ex-presidente João Baptista Figueiredo, ocorrido naquele dia. Coisas da época, não se deve julgar nem generalizar.

Roger chegou mais cedo e ficou conversando com Ana, a anfitriã, tentando impressioná-la com alguns autores franceses que estava lendo na época, até que uma amiga dela, que se chamava Teresa Assis, se intrometeu e perguntou:

-Não tive paciência de ler esse aí até o final, então você podia me contar quem ganha?

-Quem ganha?

-É,  quem ganha. O Ser ou o Nada?

Antes que a latinha de cerveja esquentasse na sua mão, Roger estava perdidamente apaixonado.

Pouco depois, um tumulto na porta. Um grupo de bêbados tentava entrar na festa, falando alto. A maior parte das pessoas de dentro da festa, igualmente bêbada e falando tão alto quanto, não se opôs, mas um ou dois mais sectários entre os festejantes queriam barrar a entrada dos novos participantes por causa de suas roupas:

-Roupa de futebol não dá, tudo tem limite!

Indiferente a isso entrou na festa Carlinhos, que a despeito do nome no diminutivo era alto, e parecia mais alto ainda por trajar uma surrada camisa cujas listras verdes e vermelhas caíam na vertical, entremeadas por listras brancas mais finas. Roger, quando o viu, mesmo sem nunca ter falado com ele levantou-se e o abraçou.

-Porra!
-Fluzão!

Teresa Assis, que era flamenguista, só foi entender esse abraço quando viu, no dia seguinte, que somente dois dias antes o Fluminense começara a se reerguer da década mais negra de sua história, sagrando-se campeão  da terceira divisão do campeonato brasileiro. Quando Carlinhos descobriu que Roger chamava-se Roger aí é que as intenções românticas de Teresa pareciam fadadas ao fracasso, naquela noite. Roger, o herói da conquista tricolor, em nada além do nome se parecia com o magrelo barbudo que agora discutia avidamente os lances do jogo com seu novo amigo, mas era tarde demais. A ligação estava feita, os laços dos amigos unidos pelo tricolor. Lembrando-se do seu pai, que obrigava a casa inteira a ficar em silêncio quando o Flamengo entrava em campo, ela só pôde se resignar com o típicamente feminino "coisas do futebol".

Conforme a cerveja foi sendo bebida, não demorou para que a conversa dos dois amigos misturou a política com o futebol e, lá pelas quatro da manhã, Carlinhos e fez um dos seus típicos discursos:

-Pra Jesus nascer o Figueiredo teve que morrer. E é assim mesmo, o Romário teve que sair do Flamengo pra renascer o meu tricolor!  O único Figueiredo que presta é o de Magalhães, por que lá tem o único bar que passou todos... Todos os jogos do Fluminense desse ano!  Viva o Roger! O Roger tá aqui do meu lado! Fala aí, Roger... O Roger é foda, por que ele fez os gols da vitória, distribuiu santinho do Lula, leu sartre, mudou o brasil e continua de pau duro! Porra!!! Palmas pro Roger!

O mesmo sectário que tinha tentado impedir a entrada de Carlinhos na festa esboçou um contra-discurso dizendo que futebol era o ópio do povo, e dessa vez foi Roger que se levantou contra ele. Roger falou com a voz baixa que lhe era habitual, e como era habitual também todos ouviram o que ele disse, que mais tarde ficou conhecido como a primeira de suas profecias:

-É impossivel separar o futebol do Brasil. Os dramas do campo são os dramas do brasileiro, por isso na política a gente usa bandeiras. O PT... - e aqui ele parou e olhou todos os presentes nos olhos- O PT ainda está verde. Com o pensamento que vocês tem, tinha mesmo que ter perdido a eleição. Tem que jogar como um time se quiser chegar no poder. O PT tem que ser um time de guerreiros.

Teresa Assis imediatamente se pendurou no seu pescoço, dando-lhe um beijo molhado, e o resto da noite se perdeu entre cigarros, cerveja, sexo, verde, vermelho e branco.

CONTINUA...

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Uma tradução para a todas desafiar




Tiro a poeira desse blog de raríssimas postagens para colocar aqui o fruto de uma prazerosa noite de tédio. Muitos amigos meus sabem que eu sou um grande fã do trabalho do Tolkien, e com essa coisa do lançamento do Hobbit eu me empolguei pra reler alguns pedaços da obra dele.

Quem quer que já tenha desafiado os calhamaços Tolkenianos sabe que, no meio de sua riquíssima prosa, o autor coloca muitos poemas, fragmentos de versos e letras de canções. Relendo o Senhor dos Anéis eu fiquei espantado de como as traduções dessas partes versificadas são todas muito bem feitas, respeitando métrica e rima, etc, uma coisa que deve dar um trabalho do cão e que merece todas as palmas do mundo para Almiro Pisetta, o tradutor. Mas então olhei para o poema mais conhecido do livro, justamente a sua epígrafe, e vi que era em versos brancos e livres. Transcrevo aqui:

Três anéis para os Reis-Elfos, sob este céu,
Sete para os Senhores-Anões em seus rochosos corredores,
Nove para os Homens Mortais, fadados ao eterno sono,
Um para o Senhor do Escuro em seu escuro trono
Na Terra de Mordor onde as Sobras se deitam.
Um Anel para a todos governar, Um anel para encontrá-los,
Um Anel para a todos trazer e na escuridão aprisioná-los
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam.

Fiquei curioso pra saber se no original era assim, e quando fui ver descobri que não só o poema é rimado como possui algumas aliterações bem legais, que podem ser notadas nesse vídeo em que o próprio Tolkien recita os versos, lendo a passagem do conselho de Elrond em que eles são lidos pelo Gandalf. Eis o texto:


"Three rings for the Elven-kings under the sky,
Seven for the Dwarf-lords in their halls of stone,
Nine for Mortal Men doomed to die,
One for the Dark Lord on his dark throne
In the Land of Mordor where the Shadows lie.
One Ring to rule them all, One Ring to find them,
One Ring to bring them all and in the darkness bind them
In the Land of Mordor where the Shadows lie."


E aqui o link do vídeo.http://www.youtube.com/watch?v=4s59oDfDoI8&feature=related


Pois bem, fiquei bem impressionado com a sonoridade dos versos e decidi fazer a minha própria tradução, tentando respeitar o máximo possível as rimas, o ritmo e as aliterações do original. Só mudei a métrica dos primeiros versos de 11 para 10 sílabas, que na minha opinião são mais sonoras no português.  Ficou assim:

Três anéis aos Elfos Reis sob o céu,
Sete aos Reis Anões dos salões de pedra.
Nove a homens fadados a um fim cruel,
E um ao sombrio Rei d'onde a sombra medra,
Nas terras de Mordor, sob um negro véu
Um Anel que os governa, um Anel que os encontra
Um anel que faz eterna sua prisão de sombra
Nas terras de Mordor, sob um negro véu

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES:


O primeiro verso recupera de um jeito elegante a repetição de sons do original. "Três AnÉIS aos Elfos rEIS..." na minha opinião é um substituto satisfatório para "Three rINGS for the Elven kINGS..."

Algumas coisas nunca poderão ter a força que tinham no inglês, especialmente o fim do terceiro verso, essa porrada silábica que é "Doomed to Die", mas dá pra chegar perto, com a aliteração "fadados a um fim...". 

O quarto verso precisa de alguma boa vontade, pois em benefício da rima eu tirei a menção que o verso original fazia ao trono do Senhor do Escuro.

Nos dois penúltimos versos eu me permiti uma rima toante entre encontra/sombra para que no meio dos versos pudesse soar o par "governa/ eterna".


Por fim, pesquisando mais a fundo nessa infinita enciclopédia nerd que é a internet, descobri que o próprio Tolkien desistiu da sonoridade do poema ao traduzi-lo para seus idiomas ficticios. A maior parte dos tradutores para outras línguas, como francês, alemão e japonês também não teve essa preocupação. De fato, além dessa minha, a única outra tradução que eu encontrei que buscou uma aproximação sonora com a versão em inglês foi a feita para o - pasmen- Esperanto! Se alguém souber ler esse negócio, aí vai:

Tri ringoj por la elfo-regoj, sub la chielo;
Sep por la dvarvo-moshtoj, en haloj de shton'.
Nau por hom' mortema, kondamnita de mortpelo;
Unu por Malluma Moshto, sur Malluma Tron',
En la lando Mordor, tenebra pro malhelo.
Unu Ring' por regi chiujn, unu por venigi,
Unu por sklavigi kaj mallume enchenigi,
En la lando Mordor, tenebra pro malhelo


sábado, 14 de abril de 2012

O VELHO E OMAR

O VELHO E OMAR

Por Breno Góes.

Eu ouvi falar do Omar Salomão antes de ouvir falar do seu pai, Waly Salomão. O Waly, imenso poeta, pra mim é antes de tudo o pai do Omar, imenso poeta. O Omar berra poemas no meu ouvido, graças a essa maravilha do MP3, desde que eu tinha quinze anos e me apaixonei por essa banda extinta, mas nunca acabada, VulgoQuinho&OsCara. O Waly veio depois, com os estudos, a paixão por poesia e esses lugares comuns do desenvolvimento de um cara que faz Letras. O afeto primeiro é mesmo pelo Omar. Tudo o que eu disser aqui eu peço humildemente pra que seja entendido pelo prisma da grande admiração que tenho por esse cara.

A culpa do que eu vou contar é, antes de tudo, do Rodrigo Cascardo. Foi ele que escreveu uma tese sobre o amadorismo na contemporaneidade e trouxe o fogo, que queima quando clareia, pras minhas ideias. E ainda por cima me convidou pra defesa. Honra indescritível. Tudo o que eu mais amo na zona sul da minha cidade estava representado na sala daquela defesa de dissertação: os Dentes, os Irmãos Brutos, o Qinho, a faculdade de Letras, a Adriana Maciel, o NELIM, Omar Salomão... pra não falar do próprio Rodrigo, o grande Casca. Foi na defesa dele que eu entendi, mas muito também pelas palavras do Miguel Jost, que esses meus ídolos são uma geração coesa, com ideias próprias, um projeto lindo e terrível: superar tudo o que resta de ranço modernista no Rio, no Brasil e no Mundo. Implantar, como se já não estivesse implantado o suficiente, o caos do pós-moderno. Assistindo o falar seguro e azeitado, mas propositalmente fragmentado e abstrato, de todos eles, eu tive a certeza de que eles vão conseguir. Pior pra mim, que ao invés de ser pós-moderno me identifico com esse velhote que morreu ontem, o moderno. Estou ferrado.

O ritual todo de mestração do Casca, lindo, se encerrou com uma frase fortíssima do Miguel Jost sobre abolir os artigos definidos, coisa que, sem ironia, me pareceu definidora. A síntese de um projeto coletivo. Foi a deixa pra irmos todos pro Astro-Bar, ali perto do planetário. É importante ressaltar que até então na minha cabeça os incendiários eram, sobretudo, o Miguel e o Casca. Além, claro, da presença quase palpável do incendiário-mor Ericson Pires. Enfim, tudo isso pra dizer que eu nem desconfiava d’Omar. Omar estava calmo, sem dizer palavra, enquanto eu, igualmente taciturno, mastigava débeis pensamentos que eu vim construindo na minha cabeça. Minha paupérrima defesa do pó moderno diante do pós-moderno.

Enfim, comemos, bebemos e rimos.

Nesse ponto a memória vacila, pisca, falha, e o flash seguinte já pega a minha querela com o Omar in media res. Sem que eu saiba dizer como nem por que, estávamos inflamadamente discutindo a identidade do autor. Eu estava repetindo, pra variar, o meu já gasto discurso de que é falho analisar uma obra pelo contexto em que ela foi produzida, por que esse raciocínio em última análise ia nos colocar diante de categorias absurdas, como “Literatura-negra-lésbica-judia”, o que era um condicionamento prejudicial do autor. O Omar falou que era impossível o autor fugir da sua identidade de origem. Presumivelmente o mesmo raciocínio era extensivo ao leitor. Eu disse que essas identidades eram todas inventadas, o cara tinha que ter a liberdade de, se quisesse, ser preto e nazista. Escândalo na mesa. O mestre Júlio Diniz me deu um “pedala Robinho”. O Qinho pra sempre se desiludiu comigo. Omar me chamou de Alga. Disso eu gostei. Alga d’Omar.

Brandi, contra ele, Paulo Henriques Brito e Borges. Ele brandiu de volta Antônio Cícero e... Borges. Nós dois admiramos os quatro autores que acabo de mencionar, então os golpes foram todos pouco efetivos. Ele disse que o Borges se dizer Inglês era uma máscara que escondia uma intensa e profunda argentinidade. Eu disse que a máscara do Borges escondia uma intensa e profunda coisa nenhuma. Não com essas palavras, é claro. Vale dizer que com essa minha parca prosa estou tirando muito da eloquência das palavras d’Omar e colocando muito mais nas minhas, uma injustiça imensa. Nessa hora eu intimamente lembrei que o personagem que estava faltando naquela Astro-mesa de bar era o Frederico Coelho. O Fred teria as palavras certas pra acabar de vez com meus modernismos tardios. Já fez isso sistematicamente nas duas ocasiões em que eu tive aula com ele. Omar, que como poeta é uma máquina de ressignificar palavras, disse que quando uma pessoa só sabe discutir berrando esse ato é chamado de Brenar. E como, e quão intensamente, eu brenei nessa noite...

Fera ferida, apelei para as minhas últimas forças argumentativas. Bradei que eles tinham medo de discutir a forma. Que a forma era uma senhora esquecida mas ainda enxuta. Omar disse que a discussão da forma era vazia. Eu só pude concordar, apreciador que sou dos vazios. Eu disse que a forma era a discussão mais importante do modernismo, e o Omar quase chorou de desgosto percebendo o quão perdida estava a minha geração. Por respeito ao Gus Levy dos Dentes, que tem a minha idade, ele não disse nada sobre isso. Eu estava sozinho. Sozinho de um jeito que só falava mesmo por não ter como voltar a trás, já que intimamente eu sabia que estava diante dos melhores e mais implacáveis adversários possíveis nessa questão toda. Gente que tinha estudado anos pra demolir discursos como o meu. Devia era ter virado pro Omar e dito que sim, ele que se conformasse por que a minha geração estava irremediavelmente perdida. Dessa vez fui eu que fiquei quieto em respeito ao Gus. Ao invés disso, soltei meu extertor final para ser definitivamente sepultado pelo Casca, que como foi o cara que começou a minha via-crucis também tinha que acabar com ela:

EU: Eu quero fazer uma análise formal do Ventura, do Los Hermanos. Acho que falta isso. Uma análise verso a verso. Eu não tenho medo do difícil.

CASCA: Isso não é difícil. É só inútil.

E o resto foi silêncio, pra mim.

Omar voltou a ficar tranquilo, nada nele adivinhava o meu recente naufrágio. Me restava melancolicamente terminar a cerveja, pagar e pegar o ônibus. E escrever esse negócio, claro. Mas o que eu tenho mesmo pra dizer é: Deste lugar de pó moderno dissolvido n’Omar de pós modernos, eu só posso mais uma vez reconhecer a grandiosidade, e a generosidade ao conversar comigo, de todos esses: O Júlio, O Fred, A Adriana, O Miguel, O Casca, O Qinho, O Gus, O Ericson e, claro... Omar. Ainda gosto dos artigos definidos, que me perdoe o Miguel. Tenho, e muitos modernos e moderninhos têm, que ler o que eles tem produzido, beber deles e com eles. Pra não falar da Santuza. Como não falar da Santuza? Por cima e por dentro das dores, os tempos são de vitalidade na PUC e no Rio, graças a gente como eles. Gente muito inteligente e coesa, por que a solidão apavora. Nessa noite eu entendi que eu sou, embora menos sábio, muito mais velho que Omar.