segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O ENCONTRO DAS TRÊS ÁGUAS



O ENCONTRO DAS TRÊS ÁGUAS


Dedicado a Júlia Pinheiro, Ilan Vale e Isabel Falcão


“Amores são águas doces
Paixões são águas salgadas
Queria que a vida fosse
Essas águas misturadas”
Roberto Mendes e Jorge Portugal


Fala-se tanto das manifestações do Rio que me surpreende ninguém ainda ter falado do Arturo, do Bruno e do Caio. Falo eu, então. Até por que os três são cariocas como eu, tem vinte e dois que nem eu e eu acabei de inventá-los.
Talvez seja uma parábola. Não sei. Arturo, Bruno e Caio vinham de três partes diferentes do Rio, e estudaram em três escolas e faculdades diferentes. Não se conheciam, os três, quando saíram de suas casas no dia 20 de junho para tomar a Presidente Vargas e se possivel o poder, por conta de vinte centavos que não eram vinte centavos, mas eram, etc., etc., etc.(vocês lembram como isso foi confuso). Arturo, o primeiro, era o que já então começava-se a chamar de Black Bloc. A sua calça de couro grossa até protegeria bem das balas de borracha, mas a proteção falhava, uma vez que a peça era rasgada na altura da coxa, à maneira dos punks. Na cabeça, o capuz do casaco e, na mochila, uma máscara de gás e uma garrafinha de água mineral que na verdade continha a famigerada mistura de ácidos e gasolina necessária para fazer um Coquetel Molotov. Arturo tinha raiva do governo.
Bruno, o segundo, era um “harumaki”. Harumakis são os manifestantes que andam enroladinhos em bandeiras do brasil, à maneira do quitute tão apreciado na culinária japonesa. Bruno enrolava-se todo na sua enorme flâmula auriverde, mas deixava pra fora o cartaz no qual escrevera “ABAIXO OS PETRALHAS”, bem visivel. Na cabeça, uma cartola verde e amarela que ele comprara na última copa do mundo. Na mochila, tintas (advinhem as cores) para o rosto e uma garrafinha de água mineral que na verdade continha vinagre. O vinagre, como todos sabem, ameniza os efeitos do gás lacrimogêneo. Bruno tinha raiva do governo.
Caio, o terceiro, era o que um jornalista vulgar talvez chamasse de um elo perdido de Woodstock. Como Bruno, Caio também pintara o rosto, mas de diversas cores e purpurinas. Ele não pretendia apenas protestar na passeata, mas mais do que isso ele queria realizar uma performance de contato corporal e troca energética com os passantes. Talvez fazer um documentário sobre isso. Na cabeça, nada além de seus louros dreadloques. Na mochila, uma câmera e uma garrafinha de água mineral na verdade contendo MDMA, a famosa anfetamina conhecida como “emedê” e mais conhecida ainda como a “droga do amor”. Mas não se iludam, Caio também tinha raiva do governo.

Encontraram-se no jardim da prefeitura, quando a primeira bomba estourou e começou a correria. Como tudo nessas horas, o encontro entre os três foi fugaz e violento: Esbarraram-se, na verdade, e foram os três ao chão. As mochilas caíram, as garrafinhas de água mineral saíram rolando e atabalhoadamente eles cataram tudo e se puseram de pé. Na confusão, mal puderam pedir-se desculpas, quanto mais dialogar e chegar à tão sonhada via intermediária que conciliaria todos os interesses da nação. Ainda por cima quis o destino, que é um fanfarrão, que as garrafinhas que eles carregavam fossem trocadas. E deu-se o que se deu:

Caio ficou com a garrafinha de Bruno. Ele planejava compartilhar o emedê com seus amigos, mas tudo o que acabou compartilhando foi vinagre. Logo, quando a chuva de bombas lacrimogêneas ficou insuportável, os amigos de Caio ficaram impressionados com os poderes paliativos do suposto emedê sobre o gás. Mais veloz do que a fumaça, se espalhou por muitas pessoas da passeata o boato dos poderes curativos da droga do “loirinho de dread”, e por alguns minutos Caio foi muitíssimo popular: todos queriam o “emedê-anti-gás”. O mais interessante foi o efeito placebo que teve o vinagre sobre as pessoas que supunham estar tomando a droga. As histórias de beijos e amassos entre manifestantes decorridas desse “emedê” ainda hoje circulam no Rio de Janeiro.
Bruno, por sua vez, ficou com o fluido de Molotov de Arturo. Esvoaçando sua bandeira, o Harumaki rapidamente se afastou da confusão (“não gosto de vandalismo”, dizia ele), não precisou acessar o seu suposto vinagre e portanto felizmente não inalou a perigosa mistura. Contudo, isso não o eximiu de problemas: Quando ele já estava indo pra casa, subindo a Avenida Rio Branco, um PM o parou para a revista. Ele, orgulhoso em “cooperar com o bom trabalho da polícia”, abriu sua mochila, com o que o meganha imediatamente identificou o potencial artefato terrorista. Bruno acabou engrossando a lista dos muitos jovens detidos naquela noite e, até que seu advogado pudesse resolver tudo na manhã seguinte, ele foi severa e criativamente interrogado pelos canelas-pretas na penitenciária. E pior, sem fazer ideia de como entrara naquela situação. Ninguém soube muito dele depois disso, parece que ele mudou pra Caldas Novas e não quer conversar com ninguém, mas não é certeza. Um amigo chegou a dizer que o interrogatório o deixou num estado “pré-amaríldico” de existência.
Por fim, Arturo. O Black Bloc foi o único dos três que, quando da ocasião do esbarrão, não estava fugindo das bombas. Estava correndo na direção delas. Quando chegou mais perto do epicentro da batalha (o prédio da prefeitura) ele se ajoelhou furtivamente e preparou, ao mover o conteúdo da garrafinha plástica para uma outra de vidro, o suposto coquetel Molotov. Digo suposto por que a garrafinha que lhe coube, vamos recapitular, não continha combustível nem ácidos, e sim a mais pura e genuína droga do amor. Na escuridão e na confusão, seus olhos mascarados não deram pela óbvia diferença de cores entre os líquidos, e então ele acendeu o pavio, fez a mira... e nada. Foi uma desilusão para Arturo jogar o “molotov” na direção dos policiais e vê-lo estilhaçar-se sem explodir, deixando-os não flamejantes, mas apenas úmidos. Mas como, pensou, se preparara tudo com tanto cuidado? Obviamente aquilo era a prova de que ele não prestava enquanto guerrilheiro urbano. Bruno, desanimado, virou de costas e foi embora, sem ver a bizarra cena que criara: os cinco policiais da tropa de choque que ele acertara largando as armas, procurando-se sofregamente e trocando um sem fim de beijos saliventos e carícias extremosas entre si, em meio ao fogo, à fumaça e às lágrimas.

Arturo, Bruno e Caio nunca mais se viram. Com o que eu descubro que isso não é parábola, no fim das contas, por que não tem moral. É, como já dizia o outro, “sem moralismo”.