quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Cem Peças de Ouro, Parte II. "O Ladrão"

Mais uma fatia da tradução que venho realizando. Parece, a princípio, muito desconexa da anterior, mas o conto Santo-Marense tem como tradição diegética esse abrir de várias perspectivas que só no final se re-entrelaçam, construindo um todo coerente.

Tem lugares que só podem ser entendidos mesmo de noite. Se tivesse chegado a Santo Mar durante o dia, o fugitivo Antão teria certamente estranhado a vegetação espinhuda e dura que tornava tão difícil o acesso à Praia do leste. Nada de lambidas úmidas de folhas largas e molengas, somente a resistência quebradiça de galhos, espinhos de cactos e vez por outra um cipó que se amarrava em seus pés. Sentiria falta de certa umidade característica às matas perto do mar, e por fim teria um medo imenso da proximidade que aquela trilha parcamente aberta tinha com o despenhadeiro à esquerda de quem vai em direção a praia.

O que ocorre é que não era dia, e como se verá nem poderia ser, no momento da primeira chegada de Antão nas terras Santo-Marenses. E por não ser dia é que ele compreendeu num instante tudo. Compreendeu o caráter engolidor do mato, consonante com a escuridão num dueto que combinava para escondê-lo de seus perseguidores. O mato duro fazia o tempo todo pequenos “crec-crec” conforme ele avançava, mas nada semelhante ao farfalhar denunciador que faria uma mata das molhadas. Antão compreendeu tudo, e abençoou o caminho que seus pés haviam tomado, abençoou o mato e fez uma prece sussurrante para as estrelas, que se deixavam ver bem por entre os galhos finos que cresciam mais altos que um homem sem, no entanto, abobodar.

Foi aí que deu com o cemitério. Assim, num de repente, enquanto corria, Antão viu sumir todo o mato e se abrir um descampado. A luz da lua permitiu ver que estava cheio de lápides. “A menos que eu me apresse, daqui a pouco vou estar vendo esse cemitério do ponto de vista de lá de baixo”, pensou Antão. Antão, não sei se eu já disse, estava sendo perseguido, desde a manhã daquele dia, e ainda que seja personagem simpaticíssimo que provoque afeição a todos, há que se dizer que estava sendo perseguido com justiça: Antão é um gatuno, e havia roubado dos cofres da prefeitura de Deltaclar, cidade vizinha, razão pela qual os guardas o vinham caçando desde antes do almoço. “Não dá jeito. O ouro que eu roubei é muito, é muito pesado. Cem peças de ouro foi um exagero.Devia ter melhor considerado a questão do peso.”

Fez as contas. Os Guardas, que vinham a cavalo, tinham estado prestes a alcançá-lo quando ele tomara o caminho das escarpas à beira mar, só acessível a pé. Aquilo lhe devia ter dado uma dianteira de meia hora. Meia Hora. Era preciso pensar rápido, devia esconder o ouro para o vir buscar depois, estava claro, mas onde? A terra ali não era simples de cavar assim, com as mãos, e picaretas, pás... Essas coisas não havia. Num átimo, se iluminou. Era um cemitério, se houvesse ali um morto recente a terra devia ainda estar mexida. Rastejando, para melhor se ajudar com suas mãos e pés, Antão começou a procurar avidamente, na pouca luz que a lua proporcionava, um retângulo que houvesse de terra fofa.

sábado, 18 de setembro de 2010

Cem Peças de Ouro, Parte 1. - "O Túmulo Vazio"

Há muitas histórias sobre a cidade de Santo Mar. Conta-se que ali houve o único caso no mundo de uma ditadura movida por razões Literárias, por exemplo, um "causo" contado na peça "Das Águas que Vem de Lá". É fato sabido também, entre os estudiosos do tema, que hoje a cidade não existe maispor causa de uma experiência mal sucedida de um bruxo daquelas bandas, que transformou toda a areia da praia em vidro. O escrito que se segue agora, um episódio pitoresco do tempo em que Santo Mar era pouco mais que uma aldeia com casas de madeira, chegou até mim por carta, enviado por uma ex-namorada geóloga. Ela, sabendo do meu interesse por esses assuntos, me enviou um pacote contendo antiquíssimas placas de argila com escritos em grego, e uma carta explicativa. Porém, furioso que eu estava com o fim do nosso namoro, rasguei a carta explicativa, que provavelmente continha informações cruciais sobre o local onde essas placas foram encontradas e, portanto, sobre onda ficava Santo-Mar. Quando voltei a mim, muito envergonhado, vi que só tinham me restado as placas em sí para traduzir e publicar aqui, como se fossem peças de ficção. Meu conhecimento de grego antigo é vergonhoso, por tanto não garanto que tenha feito uma boa tradução, mas acho que produzi uma obra no mínimo agradavel de ser lida. Aos que, como eu, continuam pesquisando o passado de Santo-Mar, digo para não perdermos a esperança de provar a existência dessa fantástica cidade, procurando documentos, artefatos e depoimentos que dêem credibilidade científica ao que até hoja é mera especulação.
Começa assim a históia que eu traduzi das placas:
Nem sempre o povo de Santo Mar foi próspero no comércio com as cidades estrangeiras, e nem sempre criou-se, nessa cidade, o boi, o porco e a galinha. Muito antes disso, e antes também que a cidade fosse murada com pedra, todos comiam quase que exclusivamente o peixe que o mar trazia. Na verdade o mar não tinha costume de trazê-lo assim como quem entrega algo de graça, por isso foi necessário que os homens fortes e bronzeados daquele tempo aprendessem as artes da pesca.
Era costume das casas que cada varão, ao completar quinze anos, construísse seu prório barco e se lançasse na Praia do Leste para pescar os Peixes Grandes. Essa praia era de mar aberto, e era considerada perigosa. Quando o homem completava cinquenta anos, podia parar de ir para a Praia do Leste e ir para a Praia do Oeste, na verdade uma enseada, onde as águas eram calmas. Esse homem já tinha provado seu valor e podia descansar. Lá ele podia pescar pequenos peixes, ensinar os mais novos os seus segredos com a vara e a rede, ou simplesmente passar as manhãs e tardes no raso bebendo o destilado de côco que as mulheres de Santo Mar produziam com tanta arte e esmero.O Pai de Amora tinha quarenta e nove anos e trezentos e sessenta e quatro dias quando pegou o barco naquela manhã, pensando "Ainda bem que é a última vez". Ele não via a hora de se aposentar das vagas perigosas do mar aberto, já estava cansado de arrancar do mar o que este tinha de mais precioso, que eram os Grandes Peixes. Não. Ele queria fazer as pazes com o mar, e já se via boiando na praia do Oeste compondo músicas para o mar, o mar que seria agora seu melhor amigo, e não mais seu poderoso inimigo. O Pai de Amora arrastou o barco da areia até a água.
Não se sabe se o Mar concordava ou discordava muito do Pai de Amora, mas qualquer que fosse seu ponto de vista, ele se fez ouvir com excessiva eloquência. Fosse para abraçar com mais vigor o pescador, fosse para puni-lo pelos peixes pescados, naquele dia o mar fez cair uma tempestade tal que as ondas ficaram maiores do que casas e os ventos ficaram mais rápidos do que pensamentos. O cruel é que a chuva só se deu em alto mar, e bem no ponto em que estava pescando o Pai de Amora. Ninguém na cidade sentiu um pingo da'água que fosse, e só os que estivessem parados bestando na areia é que veriam umas nuvenszinhas cinza bradando trovões no horizonte.
Como se não estivesse sub-entendido, que fique claro que o Pai de Amora não voltou do mar.A morte do homem foi uma imensa tristeza em sua família e motivo de muito pesar entre seus companheiros pescadores, mas não se pode usar aqui a palavra "surpresa" para se referir a morte de um pescador no mar. Não que fosse algo recorrente em Santo Mar, que tinha pescadores muito habilidosos, mas também não era incomum. A família do Pai de Amora sempre esteve preparada para se um dia isso acontecesse, e a única coisa mais triste foi o fato do homem ter chegado tão perto da aposentadoria. Isso se resolveu com uma ida do sacerdote até a casa das duas mulheres (O Pai de Amora tinha uma esposa e uma filha, que se chamava Amora), ocasião em que ele disse assim:
-Os designios dos deuses são inescrutáveis, e não foi por acaso que o marido e pai de vocês foi levado tão perto da aposentadoria. Na verdade os deuses agiram sabiamente, pois assim o marido e pai de vocês viveu tempo o bastante para juntar muito dinheiro e não deixar vocês em necessidade, mas também não ficou velho o suficiente para tornar-se um parasita das suas mulheres.
Depois dessas palavras cheias de verdade e sabedoria, ficava sobrando só um último problema: a religião de Santo-Mar dizia que os mortos só alcançavam a salvação se seus corpos fossem devidamente sepultados, e como sepultar alguém que morreu no mar e por ele foi engolido? Claro que em pouco tempo o povo da aldeia deu um jeitinho na religião, já que mortes como a do Pai de Amora não eram raras: enterrava-se, no cemitério próximo ao mar, um caixão vazio que tivesse as medidas do morto, e procedia-se durante o enterro como se o seu corpo estivesse de fato lá dentro. Os homens discursavam, as mulheres pranteavam, etc. Isso era como se fosse um "vale-corpo" para os deuses.
Assim ocorreu com o pai de Amora, que morreu no mar enquanto pensava "Eu cheguei tão perto" e foi "como-que-enterrado" depois de três dias depois de não voltar, quando sua mulher, sua Filha Amora e seus muitos amigos e vizinhos choraram muito diante de um caixão que todos sabiam estar vazio. Depois da terra ser re-colocada em cima do caixão e de uma pedra com o nome do morto ter sido posta ali marcando o local, todos voltaram para as suas casas para retomar as suas tarefas.
As duas mulheres, a Amora e a mãe de Amora, voltaram para o seu luto.
Quando o sol ainda estava alto, a Mãe de Amora fechou todas as cortinas e janelas da casinha onde elas viviam, e acendeu umas poucas velas em cada cômodo.
Enquanto o sol se punha, Amora, que tinha quatorze anos, abriu de fininho uma frestinha na sua janela, queimou um ramo de hortelã e rezou assim:
"Meus Deuses, eu sei que os senhores não acreditam nessa história de caixão vazio como sendo o morto, eu sei que o espírito do meu pai ainda está sofrendo muito lá no mar. Façam o mar trazer o corpo dele de volta, que é pra ele ter paz".
Depois que caiu a noite em Santo Mar, se houvesse alguém ainda no cemitério perto da praia essa veria um estranho vulto se aproximar, correndo pela floresta. Quem é, e o que traz num saco atrás das costas essa sombra que se movimenta com uma rapidez tão desesperada?

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

intolerância religiosa


Acho uma imensa babaquice isso que algumas pessoas dizem da Marina, que não votariam jamais nela por que ela é evangélica. É parecido com as outras tantas que não votaram no FHC por que ele disse que não acreditava em Deus. Graças a Deus (?) nós vivemos num país laico, em que o âmbito religioso é inteiramente desassociado do âmbito do poder.
O que acontece é que nos últimos 20 anos ocorreu a explosão de alguns modelos de igrejas evangélicas arrebataram muitos fiéis a partir de táticas diferenciadas das usuais estratégias de conversão da igreja católica, até então praticamente hegemônica no Brasil. Não vou entrar aqui no mérito do por que disso, pois há os que dizem que foi por conta de um desgaste da Igreja Católica e outros que falam de lavagem cerebral por parte dessas novas igrejas. Acreditando que a resposta esteja em algum ponto entre esses dois extremos, não deixo de crer que exitstam fiéis que de fato se converteram por compactuarem filosoficamente com a nova fé que abraçaram, sem nenhum tipo de "conspiração" envolvida.
É certo que aqui no Rio de Janeiro muitos de nós se incomodam com a poluição sonora das igrejas evangélicas (me desagrada muito o pastor que volta e meia fica berrando estridentemente na esquina da Av. Atlântica com a Rep. do Peru, atrapalhando o domingo dos outros, e também algumas pessoas na rua que tentam AGRESSIVAMENTE me convencer de algumas verdades), e me refiro aqui principalmente a Igreja Universal do Reino de Deus, que junto com a Igreja Renascer possui o agravante de estar ligada a diversos escândalos de corrupção. No entanto é necessário aqui termos o cuidado de inão incorrer em um preconceito. Não gosto dos candidatos que usam sua condição na igreja para se elejer, alardeando isso, primeiro por que esses geralmente são os mesmos que se envolvem em corrupção e segundo por que isso fere o laicismo do nosso estado. Agora... Isso é o caso da Marina? Estamos falando aqui de uma candidata que simplesmente possui uma fé, como o Lula possui a sua, e não deve ser julgada por conta disso. Até por que eu bem sei (tiro por mim) como é pessoal e intransferível a relaçao do fiel com a sua crença. Julgar a Marina por sua crença seria pretender entender a sua espiritualidade, o que nem de longe devia passar pela cabeça de qualquer um.
Não podemos ser preconceituosos e nem combater o que chamamos de fundamentalismo com MAIS fundamentalismo. Aliás, no último ano a maior parte das afirmativas irracionais e ofensivas que eu tenho ouvido em relação a fé alheia tem vindo de... ATEUS! Mas isso é papo pra outra hora.

Por agora quero divulgar essa resposta simples e esclarecedora da Marina sobre essa questão da sua religiosidade, que, eu vim a descobrir, começou por conta de um boato sobre o fato dela defender o ensino do criacionismo nas escolas. Me chamou muita atenção o final, em que ela defende que essa é uma polêmica importada. Gostei. Se vocÊ parar pra pensar, tem bem pouco cara de Brasil essa polêmica em que envolveram ela.


retirado do site oficial de Marina Silva em 13/09/2010

Você defende o ensino do Criacionismo nas escolas?


Assim como 90% dos brasileiros, eu acredito que Deus criou todas as coisas, mas não busco uma justificativa científica para a minha fé.

Fui envolvida nessa discussão por uma confusão que começou durante a visita que fiz em 2008 a um Centro Universitário confessional Adventista para falar sobre meio ambiente. Lá, concedi entrevista a um estudante para a rádio da faculdade de Comunicação. Ele queria saber se eu achava que as escolas adventistas deveriam ter o direito de ensinar o Criacionismo. Eu disse que sim, desde que junto com o Criacionismo, os alunos estudassem também o Evolucionismo para formar seu próprio pensamento depois.

O que eu respondi na entrevista foi uma defesa do ensino do evolucionismo darwinista dentro das escolas religiosas. Sem que a informação fosse verificada comigo, alguns veículos, então, passaram a divulgar o oposto: que eu defendia o ensino do Criacionismo em todas as escolas.

Escolas confessionais ou religiosas são permitidas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, aprovada em 1996. É por isso que existem escolas judaicas, espíritas, protestantes, bahais e católicas. E nessas escolas é permitido o ensino religioso.

O curioso, ainda, é que essa é uma polêmica importada dos Estados Unidos. Aqui, as pessoas religiosas não tem essa indisposição com a ciência. Lá, há um acirramento entre criacionistas e evolucionistas que disputam um cabo-de-guerra para ver quem está certo e quem está errado. No Brasil, graças a Deus, essa “Guerra Santa” não acontece. E nem deve acontecer!

Marina Silva

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A IDÉIA DE MAGIA EM HARRY POTTER - UMA AMBIGUIDADE

decidi ligar o foda-se e publicar aqui um texto imenso que eu escrevi já tem um tempo e acho pouco provavel que algum dos leitores habituais desse blog tenha saco de ler inteiro. Coisa de fã...

A IDÉIA DE MAGIA EM HARRY POTTER: UMA AMBIGUIDADE.
Por Breno Góes

Uma das coisas que eu mais gosto no Harry Potter, e eu gosto muito de quase tudo no Harry Potter, é que a magia ali nunca está exatamente onde nós, leitores, esperávamos que ela estivesse. O conceito de magia criado pela autora não é estanque, desliza sutilmente entre dois momentos que se opõem e nessa oposição acabam se completando, culminando na figura do próprio Harry Potter, personagem central. Nesse ponto, de alguma forma, esses dois momentos (Aqui chamados de “Magia Como Escape” e “Magia como Duplo do Real”) se confundem e se anulam, dando lugar a outra questão, a da morte, que será tratada no momento oportuno. A sistematização dessa idéia me veio esses dias quando eu resolvi reler o início da “Pedra Filosofal” e agora que eu acabei de reler o final de “Relíquias da Morte” eu já estou achando que vou ter dificuldade em passar ela pro papel. Tenho certeza que vou ser auxiliado pela paciência e compreensão do leitor, quem sabe tão fã da saga quanto eu.
Com calma, chegaremos a esses já mencionados “dois lugares”, mas antes proponho uma rápida caminhada pelos primeiros momentos do primeiro livro, que são de uma beleza sutil e essenciais para o futuro estabelecimento desses “dois lugares”. No capítulo um, “O Menino Que Sobreviveu”, somos apresentados ao sem graça Valter Dursley e sua Londres acinzentada e aburguesada, o que eu classifico como uma abordagem original para um livro Best-seller dos nossos tempos por não tentar seguir aquelas regras pré-estabelecidas do tipo “Agarre Seu Leitor Nas Primeiras Páginas!” que caracterizaram vários dos livros-plágio-de-Harry-Potter que se seguiram desde então (sem nunca macular sua inequívoca superioridade). Esse primeiro capítulo, de uma intensa monotonia (no sentido literal mesmo, de ter só uma cor), é citado por muitos proto-leitores-não-realizados da saga como o momento em que eles se desinteressaram, acharam tudo muito lento e então abandonaram a leitura. Lembro de Umberto Eco, que em seu Pós-Escrito ao Nome da Rosa afirma que as cem primeiras páginas de seu romance são enfadonhas para que ali ocorra uma triagem entre o leitor digno e o não digno. É uma possível teoria aplicável às primeiras páginas de Harry Potter (bem menos do que cem), mas aprofundá-la sem que a autora a comprove é uma discussão estéril. Elaborei outra idéia, que não nega esta apresentada, mas dá mais léguas para aprofundarmo-nos. Vamos a ela, antes ilustrando-a com os nada épicos ou grandiosos primeiros momentos do livro:

“O Sr. e a Sra. Dursley, da Rua dos Alfeneiros, n° 4, se orgulhavam de dizer que eram perfeitamente normais, muito bem, obrigado. (...)Quando o Sr. e a Sra. Dursley acordaram na terça-feira monótona em que a nossa história começa, não havia nada no céu nublado lá fora sugerindo as coisas estranhas e misteriosas que não tardariam a acontecer por todo o país. O Sr. Dursley cantarolava ao escolher a gravata mais sem graça do mundo para ir trabalhar...”
(Harry Potter e a Pedra Filosofal 1ª ed. Rocco, págs. 7-8)

Ouso dizer que todo o andar desacelerado dos primeiros capítulos é essencial para o decorrer da obra, por compactuar formalmente com o ritmo de vida da família Dursley e criar desde o princípio uma antipatia do leitor em relação a esse grupo de personagens. É claro que as cenas dos capítulos posteriores, focando a tirania que essa família exercerá sobre o herói, já seriam mais que suficientes para torná-los desagradáveis, mas ainda assim Rowling decidiu que entrássemos na saga pela Rua dos Alfeneiros, e não, por exemplo, pela cena da morte dos pais de Harry. Optando por focalizar a narrativa nesses “trouxas” desde o princípio, a autora permite que não sejamos jogados de cara no universo bruxo, preservando nossa “ignorância” para que a percamos junto com Harry na travessia do Beco Diagonal, no capítulo com esse nome. Aí, e só aí, a narrativa vai ganhar o ritmo alucinante e as cores que marcaram e marcarão a memória de tantos leitores pelo mundo, o que torna a monotonia do começo nada mais que um traço de contraste, não sem uma boa dose de ironia para com a vida “burguesinha” dos Dursley.
Sigamos adiante, mas ainda no primeiro capítulo. Na manhã modorrenta de terça-feira em que se inicia o texto, os bruxos aparecem de relance para Valter Dursley como sujeitos excêntricos, risonhos e coloridos que simplesmente parecem não se encaixar na lógica das ruas da metrópole. Já aí se intui/institui aquele que é um dos tais “dois lugares” que a magia ocupa em Harry Potter: O lugar do escape, da possibilidade do sonho e da liberdade algo inconseqüente. O lugar onde se pode vestir-se de uma maneira engraçada mesmo numa cidade careta como a Londres criada por Rowling, e ainda por cima abraçar um estranho e chamá-lo de “Trouxa”.
Nos capítulo seguinte (“O vidro que sumiu”) esse conceito continua dando o tom de todos os breves relances em que a magia aparece. (Não abordo aqui extensivamente o antológico diálogo inicial entre Dumbledore e McGonagall, mas afirmo que a Magia Enquanto Escape está presente nos sorvetes de limão do diretor). O leitor atento (eu sempre fui um desses) identifica de cara como magia os estranhos momentos em que Harry consegue escapar da tirania dos tios e do primo. A magia, aqui em seu estado mais puro e ingênuo, é o que faz o herói ter lampejos de liberdade diante da opressão da sua família adotiva num crescendo que culmina com o sumiço de um vidro e que liberta uma cobra (brasileira!) e cria pânico no zoológico. Aliás, “culmina” não é a palavra exata, por que em “As Cartas de Ninguém” tudo cresce ainda mais, e em “O Guardião das Chaves” nós finalmente acompanhamos Harry na descoberta de sua condição de bruxo. Talvez nesse instante esteja a maior manifestação em toda a saga da Magia Como Escape: A magia, na figura do gigante Hagrid, arromba a porta de onde Harry estava “seqüestrado” pelos trouxas e o resgata com uma promessa de felicidade plena, deixando, de quebra, um rabo de porco humilhante em Duda, o primo tirano. Tudo isso bem no dia do aniversário de Harry!
No capítulo seguinte a esse, “O Beco Diagonal”, tudo se decide em Harry Potter. Como eu já disse antes, a travessia do beco significa a entrada para o mundo onde a magia deixa de ser a exceção e passa a ser a regra. Ora, se a magia, em relação ao mundo dos trouxas, é aquilo que desafia tudo o que naquela sociedade é racional e lógico, era de se supor que nesse momento a aventura de Harry virasse algo parecido com a de Alice: um passeio por um mundo Irracional e Ilógico. No entanto, não é isso que se dá. Não interessam à Rowling os paradoxos da linguagem que eram tão caros à Lewis Carroll, ela busca antes uma saga da formação de um herói e a forma como ele civiliza seu mundo, o que demandará além desse outros seis livros. Rowling se propõe a escrever uma história imensa, e isso só é possível pela decisão corajosa de confrontar a visão da Magia Como Escape com outra interpretação: a Magia Como Duplo Do Mundo Real.
“O Beco Diagonal” já começa com a oposição entre sonho e realidade: Após a visita de Hagrid e uma jamais explicada saída de cena dos Dursley, Harry Potter acorda de manhã duvidando dos acontecimentos da noite anterior. Vemos aqui o clássico movimento do final de Alice, o de imaginar que foi “tudo um sonho”. Subitamente, no entanto, a magia se revela como coisa real e palpável para ele em um evento absolutamente inesperado: à luz da manhã, prosaicamente, uma coruja lhe entrega o jornal. Embora esse método de correio seja uma manifestação inequívoca de poderes mágicos atuando, o evento por si só é perfeitamente compreensível por nós, os trouxas. Um jornal que é recebido mediante ao pagamento de uma quantia é uma idéia familiar, e começa a fazer delinear-se outra noção do mundo dos bruxos: não um lugar paradisíaco e lúdico, mas um duplo perfeito do mundo dos trouxas, com todas as suas instituições e problemas espelhados, apenas com a magia como substituto da tecnologia. Isso é revelado plenamente ao leitor numa passagem desimportante para o enredo do primeiro volume (durante todo o livro ela soará quase como uma piada ilustrativa), mas de suma relevância estrutural para os livros seguintes da saga. Coloco-a aqui transposta:

“Harry ficou pensando no que ouvira enquanto Hagrid lia o jornal, O Profeta Diário. Harry aprendera com tio Valter que as pessoas gostavam de ser deixadas em paz quando faziam isso, mas era muito difícil, nunca tivera tantas perguntas para fazer na vida.
-O Ministério da Magia anda aprontando as trapalhadas de sempre – Resmungou Hagrid virando a página.”
(Harry Potter e a Pedra Filosofal 1ª ed. Rocco, pág 60)

Aqui é pela primeira vez revelada, ainda que a título de piada, a existência de uma burocracia dos bruxos, a evidência de uma sociedade com poderes mágicos que não necessariamente soluciona magicamente todos os seus problemas (e ainda por cima tem em seu governo uma competência incompetente que, segundo Hagrid, apronta sempre “trapalhadas”). Paralelamente, exatamente no mesmo instante, Harry reconhece muito cedo em seu libertador a figura do opressor, quando identifica Hagrid com o Tio Valter no momento de ler jornal. Embora a identificação não se confirme no aprofundamento do personagem Hagrid, fica latente aí uma espécie de pressentimento de que o mundo dos Bruxos não seria para Harry o mundo perfeito que ele supusera quando escapou dos tios.
Claro que, de novo, não estamos diante de uma idéia que se sedimentará. A saga de Harry Potter não se limitará a descrever o mundo da Magia Como Duplo Do Mundo Real, o que a aproximaria de uma série de sátira ou crítica social como os livros do Discworld de Terry Pratchett (aliás, autor magnífico e não suficientemente reconhecido no Brasil). Tampouco a série retornará definitivamente à Magia Como Escape, que a aparentaria aos já citados livros de Carroll e a obra de Neil Gaiman (Para ficar apenas nos autores ingleses, todos maravilhosos). Não. A grande riqueza de Harry Potter estará em oscilar opondo os dois extremos. Durante toda a saga de Rowling a oposição entre a Magia Como Escape e a Magia Como Duplo Do Real se colocará como questão, e posso aqui citar vários exemplos:

-A dicotomia entre a nunca explicada fortuna financeira de Harry associada à pobreza em que ele vive na Rua dos Alfeneiros versus a penúria deprimente de Rony suplantada pela aura acolhedora de sua casa, sempre local de alegrias e paz: Um índice de que a Magia é um escape para a falta de dinheiro. (Desde Harry Potter e a Câmara Secreta).

-A descrição, em detalhes, de alguns locais do mundo bruxo como contra-partes do mundo real, sendo os maiores exemplos Hogwarts, as casas comerciais de Hogsmeade e o Hospital St. Mungus. (A partir, respectivamente, de Harry Potter e a Pedra Filosofal, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban e Harry Potter e a Ordem da Fênix).

-A “magia institucionalizada” dos professores de Hogwarts versus a magia ancestral da lenda da Câmara Secreta, situação que evidencia que os bruxos possuem um iluminismo e um obscurantismo da mesma forma que os trouxas. (Obviamente em Harry Potter e a Câmara Secreta)

- A existência de um esporte bruxo, que em sua popularidade e na forma como movimenta a tecnologia (a escalada dos modelos de vassouras: Nimbus 2000, 2001, a Firebolt...) reflete diametralmente esportes como o Futebol. (Acentuadamente nos três primeiros volumes, e marcantemente na Copa Mundial de Quadribol em Harry Potter e o Cálice de Fogo).

- A descrença que a maior parte dos bruxos possui em relação aos seus mitos de origem, na serie só endossados pelos membros da família Lovegood. A descrença nos mitos indica que existe um cientificismo na sociedade bruxa. Ainda assim, alguns mitos acabam se provando pelo menos parcialmente reais, como o conto dos Três Irmãos. (Harry Potter e as Relíquias da Morte)

-A figura absolutamente não-cartesiana, imprevisivelmente lúdica e absurdamente poderosa de Alvo Dumbledore versus a mediocridade racional dos Ministros “trapalhões” Cornélio Fudge e Rufo Scrimgeour. (Desde Harry Potter e a Pedra Filosofal, como visto na fala citada de Hagrid, mas muito mais acentuadamente a partir do capítulo “Os Caminhos se Separam” no final de Harry Potter e o Cálice de Fogo)

Finalmente, acima de tudo, há o paradoxo maior que é a própria razão de ser da trama e tensão que só se desatará com o fim da saga: O fato de que a magia dos bruxos, sempre inexplicável pela ciência dos trouxas, encontra no personagem Harry Potter seu próprio limite. A magia transformada em ciência pelos acadêmicos de Hogwarts não consegue explicar em momento nenhum o milagre que ocorreu na noite em que Voldemort tentou matar Harry, o que faz desse acontecimento uma espécie de magia da magia, uma meta-magia. Aí é onde Rowling cava mais fundo a dicotomia entre a Magia Como Escape e a Magia Como Duplo Do Real, pois se a magia pode ser um espelho do mundo dos trouxas e o mundo dos trouxas possui um escape para o mundo da magia, então o mundo da magia deve possuir um escape também, que na trama se dá para uma terceira coisa enigmática. Essa terceira coisa é o seguidamente reafirmado e nunca claramente elucidado mistério de Harry Potter, o “menino que sobreviveu”.

Apesar de o mote ser conhecido, não custa relembrá-lo à luz da serie completa: Voldemort, o lorde das Trevas, mago tão poderoso que inspira temor no seu próprio nome, fica sabendo de um pedaço de uma profecia que indica um bruxo que irá matá-lo. Ele interpreta a profecia como se o bruxo em questão fosse o pequeno Harry Potter, que por sua vez está protegido por um feitiço que o torna não-encontrável por pessoas indesejáveis. Harry e sua família são, no entanto, traídos, e os pais do bebê são mortos pelo lorde. Voldemort ergue sua varinha e lança um feitiço letal contra Harry, uma maldição que tem como particularidade o fato de que mata instantaneamente e não tem defesa possível. O feitiço, no entanto, reflete na testa do herói (não sem marcar ali uma cicatriz) e acerta o vilão, que só não morre por que depositara antes partes da sua alma em certos objetos mágicos.
O lugar em que a magia torna-se limitada, em Harry Potter, é no ato de explicar por que o bebê Harry Potter não morreu. A magia esbarra justamente onde, no nosso mundo, a ciência também falha: na idéia da morte, a morte como o eterno inexplicável. Várias vezes Dumbledore afirma que a magia não tem o poder de ressuscitar os mortos e que não é possível sobreviver a determinadas maldições, e em Harry Potter e a Ordem da Fênix o bem e o mal se enfrentam numa estranha sala com um véu que teria o objetivo, segundo a autora, de “investigar o mundo dos mortos”. Isso evidencia que diante da morte a magia é (apenas) uma espécie de ciência, que pode postergar o fim da vida mas possui limitações e impotências que um dia tornarão a morte inevitavel. Harry Potter, no entanto, sobrevive a uma maldição letal e no clímax da série, em Harry Potter e as Relíquias da Morte, tenciona ao máximo o limite entre estar vivo e estar morto, até conseguir vencer os inimigos (a própria morte, abstrata, e a personificação dela, o VoldeMORT). Assim, senhor da vida e da morte, o herói se torna uma espécie de mago entre os magos, pois compreende aquilo que eles não compreenderam assim como eles haviam compreendido coisas desconhecidas pelos trouxas.
Sugere-se, então, que a solução para a oposição entre Magia Como Escape e Magia Como Duplo do Real é a própria solução que a narrativa apresenta para o mistério de Harry, e se transforma numa outra oposição: a oposição entre a vida e a morte, esta claramente superada pelo herói (que no último livro empenha-se em buscar os objetos que o fariam “Senhor da Morte”), mas nunca claramente descortinada aos olhos do leitor. A já clássica cena, no capítulo “King’s Cross” do Sétimo Livro, em que se dá conversa com o “fantasma” (O eco? A lembrança?) de Dumbledore numa estação King’s Cross metafísica permanece nebulosa e limítrofe entre o entendimento e a mera apreciação do caráter interrogativo do desconhecido. A partir daí não é mais possível prosseguir, a não ser no plano da elucubração estéril sobre a exata natureza da vida após a morte que tanto os livros de Rowling quanto este ensaio evitam. (Minto. J.K. Rowling dá uma singela e significativa pista sobre o assunto no finzinho do Quinto Livro: Morrer, nas palavras de Nick Quase-Sem-Cabeça, é simplesmente “prosseguir”).
Esse ensaio cumpre talvez o objetivo de tentar trazer à tona uma das muitas características geniais de Harry Potter, o deslize semiótico do conceito de Magia na série, mas respeita o caráter intrincado desse deslize (e a conseqüente oposição criada por ele) quando se torna claro que a magia, tida por muitos como o tema central do livro, é sim um tópico importante, mas não como questão central, e sim como propulsor do verdadeiro assunto da história: a morte e suas vicissitudes. A presença desta como personagem e como parte do título do último livro, além do crescente número de cadáveres em cada volume da história, apenas torna isso mais evidente. No seu momento final, solitário e cansado, um Harry que destruiu (ou forçou a autodestruição) de seu principal inimigo é agora alguém que praticamente voltou da morte e tomou posse dos três itens necessários para tornar-se “Senhor da Morte”. A renúncia final de Harry em ocupar esse papel, ao abdicar da varinha ancestral e recuperar sua própria varinha na última cena do último capítulo, quer significar alguma coisa que a principio não fica clara. A abdicação da imortalidade, no entanto, ecoa àquela mesma renúncia feita por Nicolau Flamel no primeiro livro, quando este resolve morrer no seu sexto século de vida. A imortalidade, prêmio o tempo todo buscado por um Voldemort que personifica a morte na medida em que sente medo dela, não é compatível com seu heróico antagonista.
Eis que a partir página seguinte há o famoso epílogo que mostra o quão a vida de Harry tornou-se a de um bruxo normal, sem qualquer contato com os trouxas, o que leva a crer que a Magia Como Escape e a Magia Como Duplo Do Real deixaram de ser uma questão para o ele (e por extensão para o leitor), pois não há mais do que escapar nem o que duplicar. Harry libertou-se do mundo cinzento dos trouxas e do mundo negro relativo ao seu status de “Menino que Sobreviveu”. Harry, que já esteve mais próximo do que qualquer um do outro lado,vive pacata e austeramente consciente de que morrerá por que escolheu que um dia o faria, sem medo do desconhecido. Torna-se, portanto a personificação das palavras de Dumbledore no primeiro livro, de que “para a mente bem aventurada, a morte é apenas a grande aventura da vida.”