sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A Última Reunião de Cúpula do Comando Vermelho.

(burburinho intenso entre os membros do estado maior do narcotráfico no alto da vila cruzeiro. Manhã de quinta feira.)



Chefe 1: Tô falando, a gente tem que ralar peito. Eu vi na tevê, os malucos vão subir com a porra toda, BOPE e o cacete. Não dá pra negociar, o Cruzeiro vai cair.



Chefe 2: Koé, irmãozinho, vai ficar ai na vacilação? Tu não ta ligado que o armamento aqui dos irmão é o mais tenso da cidade? Não tem esse papo de fugir não, lek, aqui o bagulho é doido.



1: Kóe Qual foi, ô rapá. Até parece que tu não tá ligado que não tem arma que fura a porra do caveirão. Aquilo lá é blindado, lek! Tá ligado colete? Aquilo lá é carro de colete.



2: Iiih, o irmãozinho aí nem sabe das parada nova. Aqui ninguém tem mais medo de caveirão não, lek, já sacamos qual é a da parada. O lance é o Pneu, rapá. Se a gente escrota a porra do chão todo com uns bagulhos que fodam o pneu do bicho aquela porra não anda mais!



1: É papo serio?



2: Koé, tu acha que eu to de kaô? Já testamo isso no Jacarezinho!



1: É bom tu não tá, por que se os caras chegarem aqui no alto a gente não tem como lutar não, que o armamento dos filhas da puta é foda. A gente vai ter que se mandar pro alemão, e aquela porra daquela trilha é mato aberto. Por isso que eu to falando, se é pra fugir vamo agora, se não vai ser um puta perigo e um puta vexame.



2: Relaxa, ô Mané. Tu tá é se cagando depois que viu o piratão que nós comprô lá do tropa dois. Tu se caga pro capitão nascimento. Se eles vié com helicóptero nós derruba, tu já sabe que a gente consegue essa parada. E se eles vié de caveirão... A porra da favela já tá toda barricada! Barra de metal , carro, móvel, até caminhão! Pra passar por aqui, só com um tanque de guerra! HAHAHAHAHAHA



Chefe 3 (Que ainda não tinha aparecido na história): Caralho, que porra é aquela que dá pra ver na janela, maluco??? Fudeu, fudeu, fudeu!!!!!



(Pânico na reunião do Estado Maior do Narcotráfico da Cidade. Em poucos segundos a sala fica deserta. Black Out













quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O Terço do Pedro


Mais uma vez eu queria falar de eleições. Mas mais uma vez a pasmaceira delas foi atropelada por uma coisa mais interessante. Dessa vez o relato auto-biográfico de uma experiência completamente estranha que eu vivenciei ontem, aparentemente um "must" da Zona Sul do Rio que já rola a muitos anos, proporcionado pelo puro boca a boca, sem ajuda da imprensa.

Eu estou com a minha companheira. Quando eu e ela chegamos ali na igrejinha que tem em frente ao shopping da Gávea, a missa das 18:00 está pra começar. O padre vem se encaminhando quase entediado pro altar, e eu noto que os bancos estão estranhamente ocupados: Apesar de razoavelmente cheios de pessoas, possuem também lacunas ocupadas simplesmente por bolsas, chales, casacos... Todas essas coisas que o carioca (aliás, qualquer pessoa) usa pra "marcar lugar". É terça feira. Chove cântaros. O padre é um saco. A igreja não é especialmente bonita. E no entanto, a julgar pelos objetos, tem muita gente interssadíssima em estar ali.

É claro que eu não estava chegando totalmente desavisado naquele local. Se estivesse, eu sairia logo no começo da missa, em que o padre lê justamente a carta bíblica que diz que a mulher deve ser submissa ao marido. Acostumado com a pregação de Padres mais progressistas (mas só um pouquinho), esse papo me irita. Mas não. Diferente do cachorro, que só entrou na igreja por que a porta estava aberta, eu tinha uma noção do que me esperava ali dentro. Ou, por outra, eu achava que tinha.

Ao longo da missa (chatíssima e burocrática), a igreja vai enchendo. Muito. Praticamente indiferente ao sermão do Padre, dezenas de pessoas (a maior parte delas mulheres) vão ocupando os lugares antes preenchidos pelos chales, casacos e bolsas, e pequenos conflitos e picuinhas bem mundanos começam a se instaurar na casa de Deus. Aqui uma senhora diz que aquela outra senhora não pode guardar mais do que cinco lugares, ali aquela outra implora uma cadeira pro tio que tem Alzheimer. Aquela última parte da missa que vem depois da eucaristia, em que o padre pede as pessoas que elas se abracem na "paz de cristo", é sumariamente suprimida. O Padre (que, eu esqueci de dizer, tem um sotaque meio espanhol, como quase todo padre) sai de cena e ninguem nota.

A igreja não para de se encher. As pessoas vão se acomodando de todas as formas, e inclusive agora que o altar está vazio elas não se furtam a conspurca-lo também, sentando-se ali como podem. A conversa aumenta, a temperatura aumenta. Quando nos damos conta um coroinha já ligou um ar-condicionado no máximo e uma simpática senhora do nossao lado é obrigada a dialogar com o sujeito como se eles estivessem na fila da peixaria do Asterix. Os focos de barraco são contidos com dificuldade por uns poucos "psius" desentusiasmados. Apesar disso somos brasileiros, creio que todos estão felizes e satisfeitos com alguma bagunça. A igreja de repente vira uma grande sala de assembléia, não de Deus, mas do homem mesmo, com todas as suas miudezas e mesquinharias. Eu e minha companheira já estamos a muito tempo bem instalados em duas cadeirinhas de plástico na lateral da nave, mas nossa posição é súbitamente ameaçada por uma velha senhora meio alemã, que já se sentara, mas parece fazer questão daqueles lugares para uns amigos hipotéticos dela. Não cedemos. A igreja parece agora cem por cento lotada e ninguem tem ânimo de sair dali.

Já mencionei o quanto chove? Chove muito. Mais do que você está pensando, pense grande. Isso. Por aí. Pois bem, com essa chuva toda, eu de repente reparo que existem dezenas (serão centenas, meu Deus?) de pessoas grudadas nas janelas com vitrais da igreja. Rostos e mais rostos semi-encobertos por guarda-chuvas, que aguardam ansiosamente. Vinda sei lá daonde, no altar surge uma jovem moça chilena, muito bonita, que diz que veio falar sobre o corpo místico de Cristo. Moça, o que é o corpo místico de cristo? Nós somos o corpo Místico de Cristo, ela diz. Ela diz e ninguém parece estar escutando. Uma lojinha de souveniers instalada do lado de fora da igreja disputa atenção com a chilena e aos poucos vai-se notando que a loja dá mais ibope. Eu e minha companheira compramos terços (na verdade ela vai e compra pra nós, se não nossas cadeirinhas de plástico seriam ferozmentemente tomadas) e finalmente parece que a coisa já vai começar. A moça chilena termina seu discurso com muita paixão, mas é só burocraticamente aplaudida antes de sair de cena. Sobem agora no altar (tomando cuidado para não pisar nos fiéis sentados) uns dois ou três técnicos de som carregando pedestais, fios e microfones. Show Time. Pedro entra em cena já empunhando seu violão e eu quase ouço, mas acho que foi só a minha cabeça, alguém dizendo pra ele "vai lá e arrasa!".

Pelo que eu pesquisei depois, o terço do Pedro é um lance que já rola a mais de dez anos. O Pedro não é o Papa, não é nem padre, mas é seguramente POP. Bonito, arrumado, educado e inteligente, possui ainda a vantagem de tocar violão de um jeito muito mais autêntico do que a maior parte dos músicos de igreja. O repertório não instiga muito, são as mesmas canções água com açucar da chamada "renovação carismática", mas a voz do cara é agradavel de se ouvir e até empolga. Pedro fala algumas palavras à guiza de conselho, e de cara vê-se que ele tem incomparavelmente mais carisma do que o padre e a moça que o precederam.

A pessoa precisa mesmo de carisma para, uma vez por mês, fazer o que Pedro se propôe a fazer. Não é uma missa, não é um show, não é uma sessão de auto-ajuda, embora possua elementos dessas três coisas. O que acontece dentro daquela igreja super-lotada é, pasmen, uma das práticas mais antigas e fora de moda da religião católica: a reza do terço! A grande questão do "terço do Pedro" é o que leva tantas pessoas a gastarem mais de uma hora de seus dias atribulados (e debaixo de chuva, não se esqueça) reazando a bagatela de:

53 Ave-Marias
6 pais nossos
5 Mistérios
5-Glórias

E volta e meia um credo, ou um santo anjo....


O que leva?

A grande questão não está (não só, veja bem) no talento violonístico de Pedro. Não. O grande lance dele não é o ouvido músical, mas o ouvido Sobre-Natural: A coisa fundamental que eu escondi de vocês até aqui é que Pedro é conhecido por ter o Dom do Espírito Santo, ou seja, uma linha direta com Nossa Senhora que lhe permite dar mensagens, conselhos e até prever o futuro. As pessoas que abarrotam a igreja estão ansiosas (e no fundo eu estava ansioso também) para ouvir uma das muitas mensagens que a virgem deveria passar para Pedro. De repente toda a nossa fé no positivismo científico, todas as nossas críticas aos padres pedófilos, todo o nosso posicionamento moderninho de esquerda, tudo isso parece não ter importância. Estamos todos rendidos escutando Pedro e, a grande estrela, a Virgem.

E os dois não decepcionaram: Foram muitos os recados dados, alguns extremamente genéricos e outros tão específicos que continham até o nome da pessoa envolvida. Um homem com tumor no cérebro foi avisado de que o tumor era superficial. Uma jovem (que teve seu nome anunciado) foi aconselhada a se livrar de um namorado insistente. Um homem foi tranquilizado pela virgem, pois "apesar de sua música estar encaixotada em meio a processos enfadonhos, ela irá progressivamente crescer". Uma família foi avisada de que um membro seu que tinha uma doença grave iria se recuperar. Não sei bem o que passou pela minha cabeça nessa hora, mas acho que teve a ver com fé. Fé sincera na energia daquela gente rezando junto.

A coisa se dá de forma tão intensa e catártica que eu quase puxei um aplauso ou um "bis" no final, de tão empolgado que fiquei. Mas, mesmo que eu tivesse feito isso, não teria sido seguido, pois a maior parte dos fiéis está muito mais interessada em ir até Pedro. É dificilimo chegar até ele. Muitos parecem desesperados para saber se ele possui mais um recado de Nossa Senhora, algo que, quem sabe, diga respeito diretamente a elas. As outras pessoas vão, em hordas, saindo da igreja num papo animado. Nada daquele clima meio paradão de "pós-entorpecimento" que a maioria de nós experimenta depois de uma missa. Alguém arma uma mesinha com lanche na porta. Ouço duas moças combinando de se re-encontrarem ali mesmo no mês que vem, no próximo terço. Eu me pergunto se assisti a um milagre da magia, da religião ou simplesmente da sociedade. Ou de todos esses. Muitos enxugam os olhos, parecem ter chorado muito durante a nada cerimoniosa cerimônia. Dificil acreditar, no instante em que saímos porta a fora, que estamos no Rio de Janeiro, século XXI.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

GILBERTOS

Queridos amigos, ando desanimado em continuar a história das "peças de ouro". Ela está todinha na minha cabeça, mas ando sem saco de escrever. Nesse meio tempo pensei em escrever algumas coisas sobre as eleições, mas a quantidade de chatices que eu tenho recebido é tão grande e o nivel das campanhas está tão ridiculamente baixo que eu me desanimei disso também. Mas isso no fundo até que é bom, por que essa conjunção me animou a escrever sobre uma coisa que eu gosto muito mas sobre a qual eu raramente paro pra pensar de forma "analítica": Música! Espero que vocês leiam e gostem, especialmente por que, entre Ians, Gustavos, Suts, Brancos e Lauras, quase todos os leitores desse blog são violonistas.

















Gilbertos.

O Caetano escrevendo quase sempre é uma desgraça, mas ainda assim eu tenho o bom hábito de ler quase tudo que ele escreve. A pessoa, quando faz isso, pode encontrar algumas pérolas a princípio escondidas no mar de frases de efeito e achismos que é a sua prosa. Esses dias, assistindo pela milésima vez o DVD “Banda-dois” do Gilberto Gil (que é sobre quem eu quero falar, na verdade) eu me dei conta de que concordava em parte com uma frase contida no “Verdade Tropical” com a qual eu a princípio discordara veementemente. Cito aqui o trecho em questão:

“De todo modo, parece-me que minha escolha indica que o mais importante do violão brasileiro se passou nas revoluções aparentemente despretensiosas de autores-cantores que usavam o instrumento apenas para ‘se acompanhar’ do que no concertismo mais ou menos brilhante dos solistas”

Claro que eu, por princípio, deveria discordar do que foi dito. Sou filho de um grande violonista clássico, por conta de quem conheço alguns grandes nomes do meio, e entendo que essa frase despreza sumariamente a contribuição de gente como o Duo Assad, Egberto Gismonti e Carlos Barbosa Lima, só pra citar alguns dos meus solistas prediletos. Quando assisti o DVD do Gil, no entanto, compreendi finalmente o que o Caetano queria dizer. Mantenho minha posição de reverência aos solistas aqui citados, mas agora vejo que há na música popular, em que o violão é acompanhamento, um desenho tortuoso que faz toda uma trilha de relações possíveis entre os paradigmas COMPOSIÇÃO x INTERPRETAÇÃO, e que essa relação pode tranquilamente ter sido o fato “mais importante do violão brasileiro”.

Comecemos por João Gilberto. Não que a história do violão de acompanhamento pré-João Gilbertiana não seja interessante, mas é em João que toda uma tradição de meneios e floreios do violão de samba é finalmente sintetizada em uma estrutura ascética e claramente delineável: a famosa “batida” da bossa nova. João limou da estrutura rítmica de seu samba tudo o que não fosse absolutamente essencial, chegando a uma estrutura mínima tão potente que só pode ser explicada como um novo gênero musical (ainda que João tenha dito e repetido que o que ele faz é simplesmente samba). Violonista e cantor de virtudes únicas, João Gilberto não foi um compositor prolixo, assinando apenas “Bim-bom”, “Ho-ba-la-lá” e alguns temas instrumentais, sendo a sua maior virtude a sub-versão de músicas de outros compositores, que em suas mãos revelavam-se e adquiriam novas faces antes insuspeitas.

Despretensiosamente, vamos ouvir e pensar. Quais são alguns dos caracteres fundamentais do violão de João Gilberto? A batida, claro, é a pedra base. A harmonia complexa também não pode ser esquecida, e a relação sincopada entre a instrumentação e a voz talvez seja o terceiro fator mais importante. Esses três dados atravessam de forma vertical praticamente toda a obra de João, criando uma relação em que a música a ser tocada se submete a uma linguagem do músico. Sambas, Bossas, Choros, Boleros, Baladas, toques de candomblé... tudo isso, quando tocado por este músico, ganha a batida, as harmonias complexas e a síncope. O violão de João é assertivo, masculino: em João Gilberto, o músico prevalece sobre a música.

Ora, se pensarmos que João é reconhecidamente a grande influência de gente como Chico Buarque, Edu Lobo, Jorge ben, Roberto Carlos e os próprios Caetano Veloso e Gilberto Gil, e se pensarmos ainda que tudo o que aconteceu posteriormente na música popular brasileira teve influência de alguma dessas figuras, podemos assumir que João inaugurou uma tradição, e não há dificuldade de entender que muito disso se refletiu na forma de tocar o violão por parte dos brasileiros e brasileiras. Penso agora em três exemplos de seguidores claros de João: Jorge ben, João Bosco e Lenine, três violonistas que desenvolveram suas próprias batidas (todas geniais, diga-se), submetendo a elas um variado escopo de músicas.
Pois bem. No DVD “Banda Dois”, do Gil, eu me dei conta de que essa tradição tinha dado origem a uma contra-tradição tão poderosa quanto. Acredito que Gilberto Gil (que ouviu muito João Gilberto) tenha sido o grande responsável por essa mudança de paradigma, mas reconheço traços dessa contra tradição também no violão de Guinga, por exemplo. Mas o que seria essa contra-tradição? Explico-me. O DVD do Gil, que mostra ele quase o tempo inteiro sozinho com seu violão, é uma jóia para qualquer um que ame o instrumento: Gil enxerga a canção antes de enxergar o arranjo, submetendo este a esta. A cada faixa a sua forma de tocar muda radicalmente, sempre para incorporar soluções novas e inventivas que possam dar vazão a algum traço daquela canção específica. É impressionante que a forma curiosa de usar as cordas soltas em “Refazenda” tenha vindo da mesma cabeça da harmonia acompanhada de linha de baixo de “Esotérico” e é mais impressionante ainda que ambas sejam obras do mesmo violonista que compôs a mão direita nervosa de “expresso 2222”. O violão de Gil é passivo para que a música o oriente, assertiva. É feminino como a porção mulher da canção “Super-Homem”. É a música guiando o músico.

Compreendo melhor, a partir de um diálogo entre essa tradição e dessa contra-tradição do violão brasileiro, o momento que o instrumento vive hoje na música pop, nas mãos responsáveis de gente como Chico Cesar e Paulinho Moska. Esses, como o próprio Caetano Veloso, são violonistas que equilibram suas “batidas” pessoais com determinadas invenções guiadas pela música que eles estão tocando, gerando peças de rara beleza e grande inventividade. Se muitas dessas interpretações, como grande parte das linhas de violão feitas por Gil, são assombrosamente simples, só quem ganha é o amador que, como eu, busca beber nas águas dos grandes mestres. João Gilberto e Gilberto Gil, o masculino e o feminino, me fizeram entender que a música pop é sim um terreno muito fértil para a invenção violonística, seja com uma postura assertiva ou passiva diante da canção, e é inspirador seguir a linha evolutiva do instrumento por eles escolhido. Sem demérito algum para os nossos grandes solistas (viva os Assad!) eu passo a ver essa dialética entre os Gilbertos como, sim, o “mais importante do violão no Brasil”.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Cem Peças de Ouro, Parte II. "O Ladrão"

Mais uma fatia da tradução que venho realizando. Parece, a princípio, muito desconexa da anterior, mas o conto Santo-Marense tem como tradição diegética esse abrir de várias perspectivas que só no final se re-entrelaçam, construindo um todo coerente.

Tem lugares que só podem ser entendidos mesmo de noite. Se tivesse chegado a Santo Mar durante o dia, o fugitivo Antão teria certamente estranhado a vegetação espinhuda e dura que tornava tão difícil o acesso à Praia do leste. Nada de lambidas úmidas de folhas largas e molengas, somente a resistência quebradiça de galhos, espinhos de cactos e vez por outra um cipó que se amarrava em seus pés. Sentiria falta de certa umidade característica às matas perto do mar, e por fim teria um medo imenso da proximidade que aquela trilha parcamente aberta tinha com o despenhadeiro à esquerda de quem vai em direção a praia.

O que ocorre é que não era dia, e como se verá nem poderia ser, no momento da primeira chegada de Antão nas terras Santo-Marenses. E por não ser dia é que ele compreendeu num instante tudo. Compreendeu o caráter engolidor do mato, consonante com a escuridão num dueto que combinava para escondê-lo de seus perseguidores. O mato duro fazia o tempo todo pequenos “crec-crec” conforme ele avançava, mas nada semelhante ao farfalhar denunciador que faria uma mata das molhadas. Antão compreendeu tudo, e abençoou o caminho que seus pés haviam tomado, abençoou o mato e fez uma prece sussurrante para as estrelas, que se deixavam ver bem por entre os galhos finos que cresciam mais altos que um homem sem, no entanto, abobodar.

Foi aí que deu com o cemitério. Assim, num de repente, enquanto corria, Antão viu sumir todo o mato e se abrir um descampado. A luz da lua permitiu ver que estava cheio de lápides. “A menos que eu me apresse, daqui a pouco vou estar vendo esse cemitério do ponto de vista de lá de baixo”, pensou Antão. Antão, não sei se eu já disse, estava sendo perseguido, desde a manhã daquele dia, e ainda que seja personagem simpaticíssimo que provoque afeição a todos, há que se dizer que estava sendo perseguido com justiça: Antão é um gatuno, e havia roubado dos cofres da prefeitura de Deltaclar, cidade vizinha, razão pela qual os guardas o vinham caçando desde antes do almoço. “Não dá jeito. O ouro que eu roubei é muito, é muito pesado. Cem peças de ouro foi um exagero.Devia ter melhor considerado a questão do peso.”

Fez as contas. Os Guardas, que vinham a cavalo, tinham estado prestes a alcançá-lo quando ele tomara o caminho das escarpas à beira mar, só acessível a pé. Aquilo lhe devia ter dado uma dianteira de meia hora. Meia Hora. Era preciso pensar rápido, devia esconder o ouro para o vir buscar depois, estava claro, mas onde? A terra ali não era simples de cavar assim, com as mãos, e picaretas, pás... Essas coisas não havia. Num átimo, se iluminou. Era um cemitério, se houvesse ali um morto recente a terra devia ainda estar mexida. Rastejando, para melhor se ajudar com suas mãos e pés, Antão começou a procurar avidamente, na pouca luz que a lua proporcionava, um retângulo que houvesse de terra fofa.

sábado, 18 de setembro de 2010

Cem Peças de Ouro, Parte 1. - "O Túmulo Vazio"

Há muitas histórias sobre a cidade de Santo Mar. Conta-se que ali houve o único caso no mundo de uma ditadura movida por razões Literárias, por exemplo, um "causo" contado na peça "Das Águas que Vem de Lá". É fato sabido também, entre os estudiosos do tema, que hoje a cidade não existe maispor causa de uma experiência mal sucedida de um bruxo daquelas bandas, que transformou toda a areia da praia em vidro. O escrito que se segue agora, um episódio pitoresco do tempo em que Santo Mar era pouco mais que uma aldeia com casas de madeira, chegou até mim por carta, enviado por uma ex-namorada geóloga. Ela, sabendo do meu interesse por esses assuntos, me enviou um pacote contendo antiquíssimas placas de argila com escritos em grego, e uma carta explicativa. Porém, furioso que eu estava com o fim do nosso namoro, rasguei a carta explicativa, que provavelmente continha informações cruciais sobre o local onde essas placas foram encontradas e, portanto, sobre onda ficava Santo-Mar. Quando voltei a mim, muito envergonhado, vi que só tinham me restado as placas em sí para traduzir e publicar aqui, como se fossem peças de ficção. Meu conhecimento de grego antigo é vergonhoso, por tanto não garanto que tenha feito uma boa tradução, mas acho que produzi uma obra no mínimo agradavel de ser lida. Aos que, como eu, continuam pesquisando o passado de Santo-Mar, digo para não perdermos a esperança de provar a existência dessa fantástica cidade, procurando documentos, artefatos e depoimentos que dêem credibilidade científica ao que até hoja é mera especulação.
Começa assim a históia que eu traduzi das placas:
Nem sempre o povo de Santo Mar foi próspero no comércio com as cidades estrangeiras, e nem sempre criou-se, nessa cidade, o boi, o porco e a galinha. Muito antes disso, e antes também que a cidade fosse murada com pedra, todos comiam quase que exclusivamente o peixe que o mar trazia. Na verdade o mar não tinha costume de trazê-lo assim como quem entrega algo de graça, por isso foi necessário que os homens fortes e bronzeados daquele tempo aprendessem as artes da pesca.
Era costume das casas que cada varão, ao completar quinze anos, construísse seu prório barco e se lançasse na Praia do Leste para pescar os Peixes Grandes. Essa praia era de mar aberto, e era considerada perigosa. Quando o homem completava cinquenta anos, podia parar de ir para a Praia do Leste e ir para a Praia do Oeste, na verdade uma enseada, onde as águas eram calmas. Esse homem já tinha provado seu valor e podia descansar. Lá ele podia pescar pequenos peixes, ensinar os mais novos os seus segredos com a vara e a rede, ou simplesmente passar as manhãs e tardes no raso bebendo o destilado de côco que as mulheres de Santo Mar produziam com tanta arte e esmero.O Pai de Amora tinha quarenta e nove anos e trezentos e sessenta e quatro dias quando pegou o barco naquela manhã, pensando "Ainda bem que é a última vez". Ele não via a hora de se aposentar das vagas perigosas do mar aberto, já estava cansado de arrancar do mar o que este tinha de mais precioso, que eram os Grandes Peixes. Não. Ele queria fazer as pazes com o mar, e já se via boiando na praia do Oeste compondo músicas para o mar, o mar que seria agora seu melhor amigo, e não mais seu poderoso inimigo. O Pai de Amora arrastou o barco da areia até a água.
Não se sabe se o Mar concordava ou discordava muito do Pai de Amora, mas qualquer que fosse seu ponto de vista, ele se fez ouvir com excessiva eloquência. Fosse para abraçar com mais vigor o pescador, fosse para puni-lo pelos peixes pescados, naquele dia o mar fez cair uma tempestade tal que as ondas ficaram maiores do que casas e os ventos ficaram mais rápidos do que pensamentos. O cruel é que a chuva só se deu em alto mar, e bem no ponto em que estava pescando o Pai de Amora. Ninguém na cidade sentiu um pingo da'água que fosse, e só os que estivessem parados bestando na areia é que veriam umas nuvenszinhas cinza bradando trovões no horizonte.
Como se não estivesse sub-entendido, que fique claro que o Pai de Amora não voltou do mar.A morte do homem foi uma imensa tristeza em sua família e motivo de muito pesar entre seus companheiros pescadores, mas não se pode usar aqui a palavra "surpresa" para se referir a morte de um pescador no mar. Não que fosse algo recorrente em Santo Mar, que tinha pescadores muito habilidosos, mas também não era incomum. A família do Pai de Amora sempre esteve preparada para se um dia isso acontecesse, e a única coisa mais triste foi o fato do homem ter chegado tão perto da aposentadoria. Isso se resolveu com uma ida do sacerdote até a casa das duas mulheres (O Pai de Amora tinha uma esposa e uma filha, que se chamava Amora), ocasião em que ele disse assim:
-Os designios dos deuses são inescrutáveis, e não foi por acaso que o marido e pai de vocês foi levado tão perto da aposentadoria. Na verdade os deuses agiram sabiamente, pois assim o marido e pai de vocês viveu tempo o bastante para juntar muito dinheiro e não deixar vocês em necessidade, mas também não ficou velho o suficiente para tornar-se um parasita das suas mulheres.
Depois dessas palavras cheias de verdade e sabedoria, ficava sobrando só um último problema: a religião de Santo-Mar dizia que os mortos só alcançavam a salvação se seus corpos fossem devidamente sepultados, e como sepultar alguém que morreu no mar e por ele foi engolido? Claro que em pouco tempo o povo da aldeia deu um jeitinho na religião, já que mortes como a do Pai de Amora não eram raras: enterrava-se, no cemitério próximo ao mar, um caixão vazio que tivesse as medidas do morto, e procedia-se durante o enterro como se o seu corpo estivesse de fato lá dentro. Os homens discursavam, as mulheres pranteavam, etc. Isso era como se fosse um "vale-corpo" para os deuses.
Assim ocorreu com o pai de Amora, que morreu no mar enquanto pensava "Eu cheguei tão perto" e foi "como-que-enterrado" depois de três dias depois de não voltar, quando sua mulher, sua Filha Amora e seus muitos amigos e vizinhos choraram muito diante de um caixão que todos sabiam estar vazio. Depois da terra ser re-colocada em cima do caixão e de uma pedra com o nome do morto ter sido posta ali marcando o local, todos voltaram para as suas casas para retomar as suas tarefas.
As duas mulheres, a Amora e a mãe de Amora, voltaram para o seu luto.
Quando o sol ainda estava alto, a Mãe de Amora fechou todas as cortinas e janelas da casinha onde elas viviam, e acendeu umas poucas velas em cada cômodo.
Enquanto o sol se punha, Amora, que tinha quatorze anos, abriu de fininho uma frestinha na sua janela, queimou um ramo de hortelã e rezou assim:
"Meus Deuses, eu sei que os senhores não acreditam nessa história de caixão vazio como sendo o morto, eu sei que o espírito do meu pai ainda está sofrendo muito lá no mar. Façam o mar trazer o corpo dele de volta, que é pra ele ter paz".
Depois que caiu a noite em Santo Mar, se houvesse alguém ainda no cemitério perto da praia essa veria um estranho vulto se aproximar, correndo pela floresta. Quem é, e o que traz num saco atrás das costas essa sombra que se movimenta com uma rapidez tão desesperada?

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

intolerância religiosa


Acho uma imensa babaquice isso que algumas pessoas dizem da Marina, que não votariam jamais nela por que ela é evangélica. É parecido com as outras tantas que não votaram no FHC por que ele disse que não acreditava em Deus. Graças a Deus (?) nós vivemos num país laico, em que o âmbito religioso é inteiramente desassociado do âmbito do poder.
O que acontece é que nos últimos 20 anos ocorreu a explosão de alguns modelos de igrejas evangélicas arrebataram muitos fiéis a partir de táticas diferenciadas das usuais estratégias de conversão da igreja católica, até então praticamente hegemônica no Brasil. Não vou entrar aqui no mérito do por que disso, pois há os que dizem que foi por conta de um desgaste da Igreja Católica e outros que falam de lavagem cerebral por parte dessas novas igrejas. Acreditando que a resposta esteja em algum ponto entre esses dois extremos, não deixo de crer que exitstam fiéis que de fato se converteram por compactuarem filosoficamente com a nova fé que abraçaram, sem nenhum tipo de "conspiração" envolvida.
É certo que aqui no Rio de Janeiro muitos de nós se incomodam com a poluição sonora das igrejas evangélicas (me desagrada muito o pastor que volta e meia fica berrando estridentemente na esquina da Av. Atlântica com a Rep. do Peru, atrapalhando o domingo dos outros, e também algumas pessoas na rua que tentam AGRESSIVAMENTE me convencer de algumas verdades), e me refiro aqui principalmente a Igreja Universal do Reino de Deus, que junto com a Igreja Renascer possui o agravante de estar ligada a diversos escândalos de corrupção. No entanto é necessário aqui termos o cuidado de inão incorrer em um preconceito. Não gosto dos candidatos que usam sua condição na igreja para se elejer, alardeando isso, primeiro por que esses geralmente são os mesmos que se envolvem em corrupção e segundo por que isso fere o laicismo do nosso estado. Agora... Isso é o caso da Marina? Estamos falando aqui de uma candidata que simplesmente possui uma fé, como o Lula possui a sua, e não deve ser julgada por conta disso. Até por que eu bem sei (tiro por mim) como é pessoal e intransferível a relaçao do fiel com a sua crença. Julgar a Marina por sua crença seria pretender entender a sua espiritualidade, o que nem de longe devia passar pela cabeça de qualquer um.
Não podemos ser preconceituosos e nem combater o que chamamos de fundamentalismo com MAIS fundamentalismo. Aliás, no último ano a maior parte das afirmativas irracionais e ofensivas que eu tenho ouvido em relação a fé alheia tem vindo de... ATEUS! Mas isso é papo pra outra hora.

Por agora quero divulgar essa resposta simples e esclarecedora da Marina sobre essa questão da sua religiosidade, que, eu vim a descobrir, começou por conta de um boato sobre o fato dela defender o ensino do criacionismo nas escolas. Me chamou muita atenção o final, em que ela defende que essa é uma polêmica importada. Gostei. Se vocÊ parar pra pensar, tem bem pouco cara de Brasil essa polêmica em que envolveram ela.


retirado do site oficial de Marina Silva em 13/09/2010

Você defende o ensino do Criacionismo nas escolas?


Assim como 90% dos brasileiros, eu acredito que Deus criou todas as coisas, mas não busco uma justificativa científica para a minha fé.

Fui envolvida nessa discussão por uma confusão que começou durante a visita que fiz em 2008 a um Centro Universitário confessional Adventista para falar sobre meio ambiente. Lá, concedi entrevista a um estudante para a rádio da faculdade de Comunicação. Ele queria saber se eu achava que as escolas adventistas deveriam ter o direito de ensinar o Criacionismo. Eu disse que sim, desde que junto com o Criacionismo, os alunos estudassem também o Evolucionismo para formar seu próprio pensamento depois.

O que eu respondi na entrevista foi uma defesa do ensino do evolucionismo darwinista dentro das escolas religiosas. Sem que a informação fosse verificada comigo, alguns veículos, então, passaram a divulgar o oposto: que eu defendia o ensino do Criacionismo em todas as escolas.

Escolas confessionais ou religiosas são permitidas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, aprovada em 1996. É por isso que existem escolas judaicas, espíritas, protestantes, bahais e católicas. E nessas escolas é permitido o ensino religioso.

O curioso, ainda, é que essa é uma polêmica importada dos Estados Unidos. Aqui, as pessoas religiosas não tem essa indisposição com a ciência. Lá, há um acirramento entre criacionistas e evolucionistas que disputam um cabo-de-guerra para ver quem está certo e quem está errado. No Brasil, graças a Deus, essa “Guerra Santa” não acontece. E nem deve acontecer!

Marina Silva

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A IDÉIA DE MAGIA EM HARRY POTTER - UMA AMBIGUIDADE

decidi ligar o foda-se e publicar aqui um texto imenso que eu escrevi já tem um tempo e acho pouco provavel que algum dos leitores habituais desse blog tenha saco de ler inteiro. Coisa de fã...

A IDÉIA DE MAGIA EM HARRY POTTER: UMA AMBIGUIDADE.
Por Breno Góes

Uma das coisas que eu mais gosto no Harry Potter, e eu gosto muito de quase tudo no Harry Potter, é que a magia ali nunca está exatamente onde nós, leitores, esperávamos que ela estivesse. O conceito de magia criado pela autora não é estanque, desliza sutilmente entre dois momentos que se opõem e nessa oposição acabam se completando, culminando na figura do próprio Harry Potter, personagem central. Nesse ponto, de alguma forma, esses dois momentos (Aqui chamados de “Magia Como Escape” e “Magia como Duplo do Real”) se confundem e se anulam, dando lugar a outra questão, a da morte, que será tratada no momento oportuno. A sistematização dessa idéia me veio esses dias quando eu resolvi reler o início da “Pedra Filosofal” e agora que eu acabei de reler o final de “Relíquias da Morte” eu já estou achando que vou ter dificuldade em passar ela pro papel. Tenho certeza que vou ser auxiliado pela paciência e compreensão do leitor, quem sabe tão fã da saga quanto eu.
Com calma, chegaremos a esses já mencionados “dois lugares”, mas antes proponho uma rápida caminhada pelos primeiros momentos do primeiro livro, que são de uma beleza sutil e essenciais para o futuro estabelecimento desses “dois lugares”. No capítulo um, “O Menino Que Sobreviveu”, somos apresentados ao sem graça Valter Dursley e sua Londres acinzentada e aburguesada, o que eu classifico como uma abordagem original para um livro Best-seller dos nossos tempos por não tentar seguir aquelas regras pré-estabelecidas do tipo “Agarre Seu Leitor Nas Primeiras Páginas!” que caracterizaram vários dos livros-plágio-de-Harry-Potter que se seguiram desde então (sem nunca macular sua inequívoca superioridade). Esse primeiro capítulo, de uma intensa monotonia (no sentido literal mesmo, de ter só uma cor), é citado por muitos proto-leitores-não-realizados da saga como o momento em que eles se desinteressaram, acharam tudo muito lento e então abandonaram a leitura. Lembro de Umberto Eco, que em seu Pós-Escrito ao Nome da Rosa afirma que as cem primeiras páginas de seu romance são enfadonhas para que ali ocorra uma triagem entre o leitor digno e o não digno. É uma possível teoria aplicável às primeiras páginas de Harry Potter (bem menos do que cem), mas aprofundá-la sem que a autora a comprove é uma discussão estéril. Elaborei outra idéia, que não nega esta apresentada, mas dá mais léguas para aprofundarmo-nos. Vamos a ela, antes ilustrando-a com os nada épicos ou grandiosos primeiros momentos do livro:

“O Sr. e a Sra. Dursley, da Rua dos Alfeneiros, n° 4, se orgulhavam de dizer que eram perfeitamente normais, muito bem, obrigado. (...)Quando o Sr. e a Sra. Dursley acordaram na terça-feira monótona em que a nossa história começa, não havia nada no céu nublado lá fora sugerindo as coisas estranhas e misteriosas que não tardariam a acontecer por todo o país. O Sr. Dursley cantarolava ao escolher a gravata mais sem graça do mundo para ir trabalhar...”
(Harry Potter e a Pedra Filosofal 1ª ed. Rocco, págs. 7-8)

Ouso dizer que todo o andar desacelerado dos primeiros capítulos é essencial para o decorrer da obra, por compactuar formalmente com o ritmo de vida da família Dursley e criar desde o princípio uma antipatia do leitor em relação a esse grupo de personagens. É claro que as cenas dos capítulos posteriores, focando a tirania que essa família exercerá sobre o herói, já seriam mais que suficientes para torná-los desagradáveis, mas ainda assim Rowling decidiu que entrássemos na saga pela Rua dos Alfeneiros, e não, por exemplo, pela cena da morte dos pais de Harry. Optando por focalizar a narrativa nesses “trouxas” desde o princípio, a autora permite que não sejamos jogados de cara no universo bruxo, preservando nossa “ignorância” para que a percamos junto com Harry na travessia do Beco Diagonal, no capítulo com esse nome. Aí, e só aí, a narrativa vai ganhar o ritmo alucinante e as cores que marcaram e marcarão a memória de tantos leitores pelo mundo, o que torna a monotonia do começo nada mais que um traço de contraste, não sem uma boa dose de ironia para com a vida “burguesinha” dos Dursley.
Sigamos adiante, mas ainda no primeiro capítulo. Na manhã modorrenta de terça-feira em que se inicia o texto, os bruxos aparecem de relance para Valter Dursley como sujeitos excêntricos, risonhos e coloridos que simplesmente parecem não se encaixar na lógica das ruas da metrópole. Já aí se intui/institui aquele que é um dos tais “dois lugares” que a magia ocupa em Harry Potter: O lugar do escape, da possibilidade do sonho e da liberdade algo inconseqüente. O lugar onde se pode vestir-se de uma maneira engraçada mesmo numa cidade careta como a Londres criada por Rowling, e ainda por cima abraçar um estranho e chamá-lo de “Trouxa”.
Nos capítulo seguinte (“O vidro que sumiu”) esse conceito continua dando o tom de todos os breves relances em que a magia aparece. (Não abordo aqui extensivamente o antológico diálogo inicial entre Dumbledore e McGonagall, mas afirmo que a Magia Enquanto Escape está presente nos sorvetes de limão do diretor). O leitor atento (eu sempre fui um desses) identifica de cara como magia os estranhos momentos em que Harry consegue escapar da tirania dos tios e do primo. A magia, aqui em seu estado mais puro e ingênuo, é o que faz o herói ter lampejos de liberdade diante da opressão da sua família adotiva num crescendo que culmina com o sumiço de um vidro e que liberta uma cobra (brasileira!) e cria pânico no zoológico. Aliás, “culmina” não é a palavra exata, por que em “As Cartas de Ninguém” tudo cresce ainda mais, e em “O Guardião das Chaves” nós finalmente acompanhamos Harry na descoberta de sua condição de bruxo. Talvez nesse instante esteja a maior manifestação em toda a saga da Magia Como Escape: A magia, na figura do gigante Hagrid, arromba a porta de onde Harry estava “seqüestrado” pelos trouxas e o resgata com uma promessa de felicidade plena, deixando, de quebra, um rabo de porco humilhante em Duda, o primo tirano. Tudo isso bem no dia do aniversário de Harry!
No capítulo seguinte a esse, “O Beco Diagonal”, tudo se decide em Harry Potter. Como eu já disse antes, a travessia do beco significa a entrada para o mundo onde a magia deixa de ser a exceção e passa a ser a regra. Ora, se a magia, em relação ao mundo dos trouxas, é aquilo que desafia tudo o que naquela sociedade é racional e lógico, era de se supor que nesse momento a aventura de Harry virasse algo parecido com a de Alice: um passeio por um mundo Irracional e Ilógico. No entanto, não é isso que se dá. Não interessam à Rowling os paradoxos da linguagem que eram tão caros à Lewis Carroll, ela busca antes uma saga da formação de um herói e a forma como ele civiliza seu mundo, o que demandará além desse outros seis livros. Rowling se propõe a escrever uma história imensa, e isso só é possível pela decisão corajosa de confrontar a visão da Magia Como Escape com outra interpretação: a Magia Como Duplo Do Mundo Real.
“O Beco Diagonal” já começa com a oposição entre sonho e realidade: Após a visita de Hagrid e uma jamais explicada saída de cena dos Dursley, Harry Potter acorda de manhã duvidando dos acontecimentos da noite anterior. Vemos aqui o clássico movimento do final de Alice, o de imaginar que foi “tudo um sonho”. Subitamente, no entanto, a magia se revela como coisa real e palpável para ele em um evento absolutamente inesperado: à luz da manhã, prosaicamente, uma coruja lhe entrega o jornal. Embora esse método de correio seja uma manifestação inequívoca de poderes mágicos atuando, o evento por si só é perfeitamente compreensível por nós, os trouxas. Um jornal que é recebido mediante ao pagamento de uma quantia é uma idéia familiar, e começa a fazer delinear-se outra noção do mundo dos bruxos: não um lugar paradisíaco e lúdico, mas um duplo perfeito do mundo dos trouxas, com todas as suas instituições e problemas espelhados, apenas com a magia como substituto da tecnologia. Isso é revelado plenamente ao leitor numa passagem desimportante para o enredo do primeiro volume (durante todo o livro ela soará quase como uma piada ilustrativa), mas de suma relevância estrutural para os livros seguintes da saga. Coloco-a aqui transposta:

“Harry ficou pensando no que ouvira enquanto Hagrid lia o jornal, O Profeta Diário. Harry aprendera com tio Valter que as pessoas gostavam de ser deixadas em paz quando faziam isso, mas era muito difícil, nunca tivera tantas perguntas para fazer na vida.
-O Ministério da Magia anda aprontando as trapalhadas de sempre – Resmungou Hagrid virando a página.”
(Harry Potter e a Pedra Filosofal 1ª ed. Rocco, pág 60)

Aqui é pela primeira vez revelada, ainda que a título de piada, a existência de uma burocracia dos bruxos, a evidência de uma sociedade com poderes mágicos que não necessariamente soluciona magicamente todos os seus problemas (e ainda por cima tem em seu governo uma competência incompetente que, segundo Hagrid, apronta sempre “trapalhadas”). Paralelamente, exatamente no mesmo instante, Harry reconhece muito cedo em seu libertador a figura do opressor, quando identifica Hagrid com o Tio Valter no momento de ler jornal. Embora a identificação não se confirme no aprofundamento do personagem Hagrid, fica latente aí uma espécie de pressentimento de que o mundo dos Bruxos não seria para Harry o mundo perfeito que ele supusera quando escapou dos tios.
Claro que, de novo, não estamos diante de uma idéia que se sedimentará. A saga de Harry Potter não se limitará a descrever o mundo da Magia Como Duplo Do Mundo Real, o que a aproximaria de uma série de sátira ou crítica social como os livros do Discworld de Terry Pratchett (aliás, autor magnífico e não suficientemente reconhecido no Brasil). Tampouco a série retornará definitivamente à Magia Como Escape, que a aparentaria aos já citados livros de Carroll e a obra de Neil Gaiman (Para ficar apenas nos autores ingleses, todos maravilhosos). Não. A grande riqueza de Harry Potter estará em oscilar opondo os dois extremos. Durante toda a saga de Rowling a oposição entre a Magia Como Escape e a Magia Como Duplo Do Real se colocará como questão, e posso aqui citar vários exemplos:

-A dicotomia entre a nunca explicada fortuna financeira de Harry associada à pobreza em que ele vive na Rua dos Alfeneiros versus a penúria deprimente de Rony suplantada pela aura acolhedora de sua casa, sempre local de alegrias e paz: Um índice de que a Magia é um escape para a falta de dinheiro. (Desde Harry Potter e a Câmara Secreta).

-A descrição, em detalhes, de alguns locais do mundo bruxo como contra-partes do mundo real, sendo os maiores exemplos Hogwarts, as casas comerciais de Hogsmeade e o Hospital St. Mungus. (A partir, respectivamente, de Harry Potter e a Pedra Filosofal, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban e Harry Potter e a Ordem da Fênix).

-A “magia institucionalizada” dos professores de Hogwarts versus a magia ancestral da lenda da Câmara Secreta, situação que evidencia que os bruxos possuem um iluminismo e um obscurantismo da mesma forma que os trouxas. (Obviamente em Harry Potter e a Câmara Secreta)

- A existência de um esporte bruxo, que em sua popularidade e na forma como movimenta a tecnologia (a escalada dos modelos de vassouras: Nimbus 2000, 2001, a Firebolt...) reflete diametralmente esportes como o Futebol. (Acentuadamente nos três primeiros volumes, e marcantemente na Copa Mundial de Quadribol em Harry Potter e o Cálice de Fogo).

- A descrença que a maior parte dos bruxos possui em relação aos seus mitos de origem, na serie só endossados pelos membros da família Lovegood. A descrença nos mitos indica que existe um cientificismo na sociedade bruxa. Ainda assim, alguns mitos acabam se provando pelo menos parcialmente reais, como o conto dos Três Irmãos. (Harry Potter e as Relíquias da Morte)

-A figura absolutamente não-cartesiana, imprevisivelmente lúdica e absurdamente poderosa de Alvo Dumbledore versus a mediocridade racional dos Ministros “trapalhões” Cornélio Fudge e Rufo Scrimgeour. (Desde Harry Potter e a Pedra Filosofal, como visto na fala citada de Hagrid, mas muito mais acentuadamente a partir do capítulo “Os Caminhos se Separam” no final de Harry Potter e o Cálice de Fogo)

Finalmente, acima de tudo, há o paradoxo maior que é a própria razão de ser da trama e tensão que só se desatará com o fim da saga: O fato de que a magia dos bruxos, sempre inexplicável pela ciência dos trouxas, encontra no personagem Harry Potter seu próprio limite. A magia transformada em ciência pelos acadêmicos de Hogwarts não consegue explicar em momento nenhum o milagre que ocorreu na noite em que Voldemort tentou matar Harry, o que faz desse acontecimento uma espécie de magia da magia, uma meta-magia. Aí é onde Rowling cava mais fundo a dicotomia entre a Magia Como Escape e a Magia Como Duplo Do Real, pois se a magia pode ser um espelho do mundo dos trouxas e o mundo dos trouxas possui um escape para o mundo da magia, então o mundo da magia deve possuir um escape também, que na trama se dá para uma terceira coisa enigmática. Essa terceira coisa é o seguidamente reafirmado e nunca claramente elucidado mistério de Harry Potter, o “menino que sobreviveu”.

Apesar de o mote ser conhecido, não custa relembrá-lo à luz da serie completa: Voldemort, o lorde das Trevas, mago tão poderoso que inspira temor no seu próprio nome, fica sabendo de um pedaço de uma profecia que indica um bruxo que irá matá-lo. Ele interpreta a profecia como se o bruxo em questão fosse o pequeno Harry Potter, que por sua vez está protegido por um feitiço que o torna não-encontrável por pessoas indesejáveis. Harry e sua família são, no entanto, traídos, e os pais do bebê são mortos pelo lorde. Voldemort ergue sua varinha e lança um feitiço letal contra Harry, uma maldição que tem como particularidade o fato de que mata instantaneamente e não tem defesa possível. O feitiço, no entanto, reflete na testa do herói (não sem marcar ali uma cicatriz) e acerta o vilão, que só não morre por que depositara antes partes da sua alma em certos objetos mágicos.
O lugar em que a magia torna-se limitada, em Harry Potter, é no ato de explicar por que o bebê Harry Potter não morreu. A magia esbarra justamente onde, no nosso mundo, a ciência também falha: na idéia da morte, a morte como o eterno inexplicável. Várias vezes Dumbledore afirma que a magia não tem o poder de ressuscitar os mortos e que não é possível sobreviver a determinadas maldições, e em Harry Potter e a Ordem da Fênix o bem e o mal se enfrentam numa estranha sala com um véu que teria o objetivo, segundo a autora, de “investigar o mundo dos mortos”. Isso evidencia que diante da morte a magia é (apenas) uma espécie de ciência, que pode postergar o fim da vida mas possui limitações e impotências que um dia tornarão a morte inevitavel. Harry Potter, no entanto, sobrevive a uma maldição letal e no clímax da série, em Harry Potter e as Relíquias da Morte, tenciona ao máximo o limite entre estar vivo e estar morto, até conseguir vencer os inimigos (a própria morte, abstrata, e a personificação dela, o VoldeMORT). Assim, senhor da vida e da morte, o herói se torna uma espécie de mago entre os magos, pois compreende aquilo que eles não compreenderam assim como eles haviam compreendido coisas desconhecidas pelos trouxas.
Sugere-se, então, que a solução para a oposição entre Magia Como Escape e Magia Como Duplo do Real é a própria solução que a narrativa apresenta para o mistério de Harry, e se transforma numa outra oposição: a oposição entre a vida e a morte, esta claramente superada pelo herói (que no último livro empenha-se em buscar os objetos que o fariam “Senhor da Morte”), mas nunca claramente descortinada aos olhos do leitor. A já clássica cena, no capítulo “King’s Cross” do Sétimo Livro, em que se dá conversa com o “fantasma” (O eco? A lembrança?) de Dumbledore numa estação King’s Cross metafísica permanece nebulosa e limítrofe entre o entendimento e a mera apreciação do caráter interrogativo do desconhecido. A partir daí não é mais possível prosseguir, a não ser no plano da elucubração estéril sobre a exata natureza da vida após a morte que tanto os livros de Rowling quanto este ensaio evitam. (Minto. J.K. Rowling dá uma singela e significativa pista sobre o assunto no finzinho do Quinto Livro: Morrer, nas palavras de Nick Quase-Sem-Cabeça, é simplesmente “prosseguir”).
Esse ensaio cumpre talvez o objetivo de tentar trazer à tona uma das muitas características geniais de Harry Potter, o deslize semiótico do conceito de Magia na série, mas respeita o caráter intrincado desse deslize (e a conseqüente oposição criada por ele) quando se torna claro que a magia, tida por muitos como o tema central do livro, é sim um tópico importante, mas não como questão central, e sim como propulsor do verdadeiro assunto da história: a morte e suas vicissitudes. A presença desta como personagem e como parte do título do último livro, além do crescente número de cadáveres em cada volume da história, apenas torna isso mais evidente. No seu momento final, solitário e cansado, um Harry que destruiu (ou forçou a autodestruição) de seu principal inimigo é agora alguém que praticamente voltou da morte e tomou posse dos três itens necessários para tornar-se “Senhor da Morte”. A renúncia final de Harry em ocupar esse papel, ao abdicar da varinha ancestral e recuperar sua própria varinha na última cena do último capítulo, quer significar alguma coisa que a principio não fica clara. A abdicação da imortalidade, no entanto, ecoa àquela mesma renúncia feita por Nicolau Flamel no primeiro livro, quando este resolve morrer no seu sexto século de vida. A imortalidade, prêmio o tempo todo buscado por um Voldemort que personifica a morte na medida em que sente medo dela, não é compatível com seu heróico antagonista.
Eis que a partir página seguinte há o famoso epílogo que mostra o quão a vida de Harry tornou-se a de um bruxo normal, sem qualquer contato com os trouxas, o que leva a crer que a Magia Como Escape e a Magia Como Duplo Do Real deixaram de ser uma questão para o ele (e por extensão para o leitor), pois não há mais do que escapar nem o que duplicar. Harry libertou-se do mundo cinzento dos trouxas e do mundo negro relativo ao seu status de “Menino que Sobreviveu”. Harry, que já esteve mais próximo do que qualquer um do outro lado,vive pacata e austeramente consciente de que morrerá por que escolheu que um dia o faria, sem medo do desconhecido. Torna-se, portanto a personificação das palavras de Dumbledore no primeiro livro, de que “para a mente bem aventurada, a morte é apenas a grande aventura da vida.”

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O FIM

Morto o sujeito, é costume que se o enterre. Costume ambíguo esse do sepultamento, pois que por um lado visa o ocultamento do que não se quer mostrar (tirar das vistas dos vivos os que já estão putrefando) e por outro consiste numa cerimônia alardeada inclusive no jornal, em que se espera que todos os conhecidos do morto compareçam. O fim da vida é assim um escuso mistério (sempre) mas é também um "festivo" desenlace de uma trama. No enterro, ritualiza-se o fato de que aquele ali já pode ter sua vida lida pelos outros: Já teve principio, meio e fim. O morto, e as coisas finalizadas, em geral, tem algo que aos vivos sempre é negado: a capacidade de exibir simetrias, harmonias, sentidos, caracterísitcas que nós, seres em trânsito, não temos.

O fim, portanto, é necessário pra que se note a beleza da forma. Enquanto uma coisa está acontecendo ela é mais como uma música, série de linhas melódicas que combinam harmonia ou tensão em momentos fugazes, e que tem uma beleza da qual podemos até nos tornar parte (como numa dança) mas nunca poderemos verdadeiramente apreciar com distanciamento. Para que haja esse tipo de prazer, a coisa tem que ter início, meio e fim.

Esse talvez seja um bom consolo para lidarmos (nós, vivos, seres ainda infindos) com a finitude das coisas e até de nos mesmos. É só depois do fim que viraremos beleza apolínea, linha de obra de arte. Dizer, no fim de um relacionamento, que "está tudo bem por que a vida continua" é por certo uma verdade luminosa, mas talvez tão luminoso quanto seja reconhecer que o relacionamento, agora finalizado, cristalizado, deixou de ser música ecoando para virar quadro a ser posto no nosso relicário pessoal. Na sala de estar da alma, podemos alardear "esse é um belo relacionamento que eu tive, e ainda combina com o meu sofá".

Por certo essa coisa de ser brasileiro, indivíduo essencialmente musical, me faz desgostar do fim das coisas, esse fator ordenador. Prefiro o calor amorfo do estar sendo do que o equilíbrio harmônico do foi. Escrevo esse texto (textos são interessantes, tem sempre que ser finalizados) para me adestrar a lidar com essa verdade indiscutivel: As coisas sempre tem fim.

Por outro lado...

Li a um tempão numa National Geographic que, segundo alguns cientistas, até o universo tem fim e tem a forma de um dodecaedro. Isso, longe de ser um triunfo das "coisas terminadas", um triunfo dos mortos, antes mostra a força dos vivos. Explico. Esses mesmos cientistas, se eu li certo, dizem que, se o universo tiver mesmo fim, todas as ondas sonoras produzidas desde sempre estão "emboladas" nas suas paredes, até hoje soando (acho que era por causa do princípio de conservação de energia, mas posso estar falando besteira). Por todas as ondas sonoras eu digo todas mesmo, inclusive as vozes de Jesus Cristo e de Júlio Cesar, o tiro que matou o arqui-duque ferdinando, o som da explosão do krakatoa, o meu primeiro gemido de choro quando eu nasci, um grão de areia friccionando com outro no deserto do Saara e até as teclas desse teclado de computador batendo nesse exato momento. Essas coisas, esses sons, não tem fim nunca, estão lá no fim do universo soando ao mesmo tempo, quem sabe harmonicamente ou talvez como um cluster de piano. Isso é muito louco, e se desautoriza alguns de nós a virem com esse papo de "acabou mas foi bonito", alegra tantos outros que acham que a gente vive não pelo passado, mas pelo estar passando. E daí que todas as coisas estão passando ao mesmo tempo?

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

AAA- Arnaldos Antunes Anônimos

Micro peça em um ato


N°15- Boa tarde gente... Eu sou o N°15, e estou a vinte dias sem fazer um jogo de palavras.

TODOS- Oláá, n° 15.

LÍDER- Conta a sua história pra gente, companheiro. Quer um bom-bom?

N°15- Tá bom

TODOS- Opa, opa!

N°15- Desculpa. Quero. (suspiro). Tudo começou, pra mim, quando eu tava ouvindo "Tocando em Frente", do Almir Sater, e saquei aquele trocadilho com manha/ manhã e massa/ maçã. Coisa leve. Achei bonito, achei que não fazia mal, e naquele mesmo dia escrevi um poema chamado "Carão na cara do cara". Não mostrei pra ninguem, fiquei na dichava. Mas quando o meu irmão achou o poema na minha mesa ele me dou um disco do Zeca Baleiro, disse que tinha a ver...

N°4- (sem conseguir se segurar) Achava que tava na dichava, mas tirou o cavalo da chuva quando acharam a chave...

TODOS- AAAAH

LÍDER- Segurança, tira esse cara daqui!

(confusão. retiram o n° 4).

LÍDER: Pode continuar, foi só um contratempo.

N°15- Bom... Eu comecei a ouvir Zeca Baleiro, né? Eu dizia pra mim mesmo que não tinha nada demais, tem um monte de gente que ouve Zeca a vida inteira sem desenvolver nenhum tipo de vício... Mas no fundo, sentia que era a porta de entrada para coisas mais pesadas. Escrevi um livreto de poemas para ler no sarau da escola que era assim "O babaca/ saca/ a faca/ e ataca/ o panaca/ Que sai/ De maca./ Mitose.

N°12- Putz... Pesado.

N°15- Foi quando um professor percebeu o meu caso e disse que podia me ajudar. Na verdade ele era um traficante do bagulho, tava inserido no movimento, e me deu meu primeiro livro do Arnaldo Antunes. (voz embargada) Daí eu senti que o negócio ficou sério.

LÍDER- Calma! Essas coisas é melhor falar mesmo. Bota pra fora.

N°15- Eu comecei a me afastar dos meus amigos, da minha família... Me entranhei no dadaísmo, comecei a ler os formalistas russos, ninguem mais queria ficar perto de mim. Acho que meu ponto mais baixo foi quando eu vendi o video cassete lá de casa pra comprar uma edição rara da fase concretista do Gullar. Por aí eu já fazia jogos de palavras sofisticadíssimos e percebi que podia sustentar meu vício vendendo eles, mesmo que acabasse viciando outras pessoas.

LÍDER- Você não se sentiu culpado?

N°15- Um pouco. Mas a vontade de consumir poemas concretos e jogos de palavras era mais forte. Meus pais tentaram me ajudar, e me mandaram pra uma micareta na Bahia. No começo eu achei que tinha conseguido voltar ao normal, mas uma noite, depois do show da Ivete eu escrevi isso aqui:

O can ivete
Da
Ivete
Rasga
a
Fresta
e
Faz
R
o
L
a
R
a festa.

Imediatamente eu fui expulso da micareta por excesso de intelectualismo. Nesse ponto eu fui convidado pra cúpula do tráfico de concretismo pelos fodões...

LÍDER- Quer dizer que...

N°15-
Pois é. Eu conheci o Augusto de Campos e o Décio Pignatari. Eu ficava lá na boca lendo as obras deles, foi uma viagem muito louca, parei de conseguir falar sem ser rimado ou dadaísta. Se eu queria um copo d'água pra minha mãe eu falava assim:

"Me dá esse co(r)po
Que tem dentro
Não o coentro
mas essa poça
Moça
Tu
Que tinha dentro
Não o coentro
Mas eu.

Árvore."


Mas a minha mãe nem falava mais comigo... Foi então que um dia o Augusto de Campos me chamou num canto lá e me falou que ia me dar um troço muito pesado, mas que eu ia gostar. E então ele me deu pra ouvir o "Araçá Azul", o disco concretista do Caetano... Bicho, aquilo foi demais até pra mim. Quando o disco acabou foi que eu percebi que aquilo, além de uma merda, era uma droga, e que eu estava viciado e precisando de ajuda. Foi quando eu encontrei os Arnaldos Antunes Anônimos, e percebi que não estava sozinho. Foi como uma luz na noite. (emocionado) Eu só queria dizer que essa é uma luta que a gente vai vencer junto, pessoal, a gente vai superar o nosso vício em poesia concreta. Fora a poesia concreta, essa cocôisa abjeta, ela que não se meta co'a nossa meta! Psicoprotomotriz do infeliz sem verniz, me diz! Agh... Socorro...Sóco Russo Corro, só corro, socorro, só cor, Rô, Socorro!!!!

LÍDER- Guardas!

domingo, 15 de agosto de 2010

mentiras

É que eu descobri
Que a gente mente muito
Que a gente mente sempre
Que a gente às vezes mente
Sem sentir

Quando eu reconheci
Que eu sinto muito mesmo
Mas é que eu me esqueci
Minhas mentiras a esmo
Por aí

Mas o que é que se faz?
Quando alguém sabe quem é
Quando alguém sabe o resto
Mas se esqueceu do texto
Lá pra trás?

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Para Laura Loureiro

Poema para namorada, o que vai contra o que me propus quando escrevi a minha descrição pessoal nesse blog. Coisas da vida.

Se a vida é mesmo uma senda
O amor é essa tenda
em que se mora.

Se a vida é a pagã peleja
O amor é a igreja
em que se ora.

Se a vida é chorar um arroio
O amor é olho
de onde se chora.

Se a vida é uma fruta no chão
O amor é o botão
Antes da flora.

Se a vida é, enfim, ir-se embora,
Vagar pelo mundo sem centro,
O amor é, pois, todo o dentro,
Pra que possa haver um fora.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

breve pensamento












"Bem peneirados, "Muito" e "Pouco" renderiam um único disco, melhor resolvido que os dois. Muitas das sobras estão no segundo, com insossas canções do fraco Johansen, "Oh my love, my love" e "Waiting for the sun to shine" (esta em parceria com o intérprete), e a arrastada toada "Saudade", que Moska escreveu com Chico Cesar, e Bethânia (em dueto com Lenine) lançou em 2009 no CD "Tua". Bastava aquela gravação. Como Tom & Vinicius lembraram há cinco décadas, chega de saudade!"

Retirado da resenha que o "globo" fez do disco "muito pouco" do Paulinho Moska. (O resenhista é um sujeito chamado Antônio Carlos Miguel)

A resenha, como de hábito, é muito ruim, e o disco, como de hábito é muito bom. Mas o trabalho medíocre do indivíduo que escreveu a resenha pode ser melhor percebido no final do texto, quando fica claro que ele só falou mal da música "saudade" para poder fazer o trocadalho do carilho com a canção de tom e vinícius. Todos nós estamos carecas de saber o quão irresponsável é a crítica musical no nosso país, mas essa eu ainda não conhecia: definir a opinião sobre uma obra apenas pela qualidade da piadinha que se pode fazer com essa opinião. Dá muita preguiça de argumentar com um texto desses, então eu sugiro que vocês que estejam lendo isso dêem um jeito qualquer de ouvir a música "saudade", que encerra o disco. É linda, do caralho, uma das melhores coisas que eu ouvi ultimamente, e por sí só destrói esse trabalho medíocre desse pobre crítico.

pra se ter uma idéia da gravação de "saudade" que está no disco, aí vai este vídeo, que está bem próximo (com o ônus de não ter a voz linda do chico cesar):

http://www.youtube.com/watch?v=ZWjXc70l3yw

Saudações a esse belo disco duplo, que devia ser duplo mesmo!

ps: quem conseguir, escute o blues "provavelmente você" também, uma música linda com uma segunda voz da porra.
vídeo dela (bem inferior a versão de estúdio, é verdade, principalmente por não ter a tal segunda voz):

http://www.youtube.com/watch?v=z11TWoUBTQI

domingo, 8 de agosto de 2010

Misture bem e deixe a massa crescer














Escrevo sob e sobre a FLIP 2010, daonde acabo de voltar. "Sobre" por que esse é o assunto do meu texto, e "sob" por que ainda estou SOB o impacto dessa grande FESTA (pois, ao contrário do que pode se pensar, o f de flip não é de feira) que anualmente celebra a literatura e a cidade de paraty, duas coisas velhas que resistiram aos avanços do tempo conservando a sua beleza e o seu poder.

O homenageado da vez foi o sociologo Gilberto Freyre, numa atitude que surpreendeu a agradou, visto que mostrou que a literatura brasileira é plural e disversificada, não possuindo baluartes apenas no campo da poesia e da ficção (genêros aos quais pertenciam os homenageados até então). Claro que quando eu digo "surpreendeu e agradou" só posso estar dizendo por mim, sem generalizar minha opinião, pois é fato que na verdade a escolha foi controvertida. A moda de "proteção de minorias" que atacou o pensamento sociológico brasileiro fez com que determinadas escolas (represenatadas na FLIP) vissem em trechos isolados e fora de contexto de Freyre afirmações de cunho anti-semita, racista, etc, etc, sem levar em conta que o todo da obra dele atua justamente como DES-recalcador do nosso racismo, pro bem ou pro mal trazendo a questão do negro e do índio para o centro do debate sobre a identidade nacional. Claro que, para determinados cientistas que se dizem cientistas humanos mas são absurdamente cientifcistas, cerebrais e positivistas, é muito fácil atacar um autor que escreve tão a partir de seus AFETOS como Gilberto Freyre. Mas tudo bem. A FLIP mostrou quem estava certo no decorrer dos quatro dias.
Quatro dias de osteniva libertinagem literária, com alta licensiosidade libidinosa entre as escolas, as sintaxes, os conceitos e as palavras. As mesas onde Peter Burke e Robert Darnton discutiram o futuro do livro fornicaram conceitualmente com os poetas de rua da periferia de são paulo que conseguiram imprimir suas obras em tiragens simples e baratas graças à mobilização comunitária e divulgar seu trabalho na FLIP. O futuro do livro, em algum lugar entre o I-Pad e e o cordel de rua, nascerá com certeza desse equilíbrio entre opostos, dessa DEMOCRACIA RACIAL DE ENCADERNAÇÕES. Ao mesmo tempo em que isso acontecia, o chato do Richard Dawkins, aquele darwinista MALA que falou na FLIP passada, foi devidamente contraposto pelo pensamento mestiço do ingles arianíssimo Terry Eagleton, teórico da literatura, que lembrou a todos nós que não só Deus sobreviveu aos atentados terroristas de Nitty como também está mais revolucionário e marxista do que nunca. Linha de pensamento jamais "clara", jamais "limpa", jamais "objetiva", mas inebriada pelo ópio do povo, que não alieniza mas dá um barato muito louco. Terry Eagleton conversou com Gilberto Freyre talvez sem saber, mas isso é comum de qualquer FESTA. Mas o grande elogio à MESTIÇAGEM, à MISTURA, às IMPUREZAS, aconteceu mesmo na figura do nosso poeta Ferreira Gullar, que contou como se foi ao mesmo tempo o pai e o assassino do concretismo asséptico dos paulistas e depois o poeta que gerou o POEMA SUJO, obra de nome tão sugestivo quanto Freyreano. Quando o poeta, já tendo revisitado toda sua vida na mesa com a graça de um Clown (coisa que ele se tornou), começou a recitar um longo trecho desse poema-obra-prima, a FLIP inteira se encheu de lágrimas. Ou foram só os meus olhos?
Muito ainda pra dizer, até agora eu não mencionei o originalíssimo show de abertura (essa dobradinha nestrovski/lobo) e nem os poderosíssimos saraus que rolaram pelas madrugadas, mas acontece que estou cansado da viagem, e eufórico demais pra escrever decentemente. Basta resumir dizendo que em tudo puderam ser vistos os signos da mestiçagem, do sincronismo e do entrecruzamento (por que não dizer logo fornicação?) de idéias. Tudo sobre o signo de Freyre, semrpe muito maior do que os que tentaram fazer dessa flip o seu mausoléu.
E olha que eu nem comecei a falar ainda da cachaça...


LISTA DE COMPRAS- FLIP 2010:

O MISTÉRIO DO SAMBA- Hermano Vianna
CACHALOTE- Daniel Galera & Rafael Coutinho
ALGUMA POESIA, Fac Símile da 1a edição - Carlos Drummond de Andrade (Org. Eucanaã Ferraz)
O PRESIDENTE NEGRO- Monteiro Lobato
O DIA EM QUE JAMES BROWN SALVOU A PÁTRIA - James Sullivan
VOO DE PRIMEIRA CLASSE- Mannu U.F. & J.R. MC
LIVRETO SEM NOME DO POETA MAURÍCIO MARQUES

Para o futuro, prevejo a compra de livros dos senhores Robert Darnton, Salman Rushdie e Terry Eagleton.

sábado, 24 de julho de 2010

Perto do Umbigo Dela.

Perto do umbigo dela eu deslizando nela assim o meu nariz
Ela achava boa aquela sensação da gente viver por um triz

Com a minha lingua ali eu lia e decifrava o seu idioma
Compreendia o que ela não dizia, assim um bárbaro entrando em roma

Tanto gesto e gosto junto e não faltava assunto pra gente calar
Que era assim feito defunto morto de amar muito gente a se estar

Todas as fontes de luz a gente é que conduz num lance de bravata
Contra Deus e os santos seus, alados e ateus de terno e de gravata

Meu nariz já no teu peito que tem cor e jeito de um morro de terra
Haja um coração que habite-o e eu vou erguer um sítio no pé dessa serra

Todas as fontes de cor conduzem o amor na direção do chão
Pra explodir todos os tons até haver só sons, lençóis de escuridão

Todas as fontes de cor conduzem o amor do chão às direções
Pra explodir todos os tons até haver só sons, sem sóis, nascentes de canções.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Professor Olímpio contra o Horóscopo - Parte 4. "O FIM"


Eis o final do meu primeiro mini-folhetim de quatro capítulos, que eu fiz questão de escrever sem a menor idéia do que colocar no capítulo seguinte. Foi mais um desabafo pela escrotice do meu signo (sim, se alguem ainda não entendeu eu sou de capricórnio), mas ao longo dessas poucas e bem mal escritas linhas eu pude falar também de algumas outras coisas. Melhores histórias virão, e com mais sentido também. Um abraço e aí vai:

O editor do jornal "O Berro do Povo" desligou o telefone, irritado, e gritou com a sua secretária, coisa que sempre o tranquilizava.

-Porra! Aquele puto daquele astrólogo não entregou a coluna dele de hoje e não atende o celular!

-O senhor deseja um café, senhor?

Não houve tempo para a resposta. O editor tinha acessado o site do g1 (era um tique dele, sempre que ficava nervoso ele ou abria um vídeo de besteira no youtube ou a página de "notícias bizarras" do g1) e agora olhava, estupefato, a maior manchete do site:

INCÊNDIO NO RECREIO DOS BANDEIRANTES.

DURANTE A TEMPESTADE DE ONTEM A NOITE UM RAIO ATINGIU A COBERTURA DO BADALADO ASTRÓLOGO JONAS THOMAS, DO JORNAL "O BERRO DO POVO". O RAIO QUEBROU VIDRAÇAS E ACARRETOU UM INCÊNDIO QUE FOI RAPIDAMENTE CONTROLADO. O ASTRÓLOGO, NO ENTANTO, NÃO FOI ENCONTRADO, SUSPEITA-SE QUE ELE ESTEJA MORTO.

-Tr... Traz o café, Soninha. E escrteve "Luto" no meu Twitter.


A notícia foi badalada por algumas semanas, ninguém achou o corpo, chegaram a sugerir assassinato por conta de umas manchas de sangue meio suspeitas, mas como não se achou nenhuma evidência mais concreta a hipótese não foi adiante. Durante as curtas investigações, uma busca no computador do desaparecido astrólogo Jonas revelou que ele era uma fraude, pôs os nomes de várias pessoas que o tinham subornado na berlinda e um pequeno fuzuê se deu no mundo das celebridades. A pessoa que mais tinha requisitado fraudes de Jonas, no entanto, não era nenhuma eminência, e sim um misterioso "Professor O.", sempre com pedidos para o signo de capricórnio. Milhares de Carpicornianos que tinham ganho uma esperança com as previsões otimistas do astrólogo voltaram ao seu estado de acabrunhamento típico, quando souberam que tudo não passara de uma fraude. Depois um veio Copa do Mundo, escândalos políticos e todos se esqueceram do sumiço do astrólogo.

Mas e o Professor Olímpio? O Professor Olímpio continua em casa, desistiu de vez de ler o horóscopo e acompanha com interesse a nova coluna que tomou o lugar dele: "Reforma Agraria do espaço virtual", por um professor amigo seu na faculdade. Ficou feliz de não ter mais que mandar dinheiro pro astrólogo, mas está até agora pagando a prestação do matador de aluguel. Matador de aluguel? Pois é. E o matador, coitado, ainda não entendeu por que teve que falar aquele texto estranho por um alto falante no telhado do Jonas antes de matar o cara, tocar fogo na casa e dar sumiço no corpo. Mas não se preocupou muito, afinal tinha escolhido esse ramo de trabalho por conta justamente do fato de não queria cair numa rotina.

A noite caiu, e o editor do jornal terminou seu café enquanto a minha câmera de narrador começou a se afastar dele. E por toda a cidade, ou melhor, por todo o mundo, Bilhões de pessoas continuaram seus caminhos de lugar nenhum pra sabe-se lá aonde. Todas meio melancólicas pela Angústia-Da-Condição-Humana-De-Que-Nos-Fala-Sartre, mas só umas poucas escolhidas realmente tristes. Tristes, tristíssimas, por que eram do maltido signo de capricórnio.

Câmera foca o pôr do sol, fade out.

FIM.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

À moda do sut

Tochas:
Iluminariam seu caminho
Taxis:
O levariam em fuga veloz

Mas ele
Sem tochas e sem taxis
Apenas
Intoxica-se de sintaxes

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Professor Olímpio contra o Horóscopo - Parte 3. "A Máfia".

Jonas, o Astrólogo, agora estava na crista da onda do ó do borogodó por cima da carne seca. A sua nova postura enquanto astrólogo, a de corrupto anti-ético que alterava os horóscopos de todos os dias e de todos os signos conforme o sujeitio pagasse a ele, tinha lhe rendido uma coluna no suplemento de domingo, umas entrevistas na hebe, um curso na Casa do Saber e agora ele já estudava abrir sua própria franquia de iogurte congelado, a yogoastros. Apesar de nunca mais ter consultado um mapa astral, seu prestígio crescera e ele era considerado até por outros astrólogos como um sujeito muito talentoso.
Um dia, ele estava em sua nova cobertura num condomínio chamado Barra UltraBlastResortBeach, ele recebeu um telefonema que o deixou nervoso. Era uma cliente assídua sua, uma socialite daquelas turbinadas que estava sempre pedindo que ele tentasse dar uma recalchutada nas previsões pro seu signo, Peixes, numa de deixar Peixes menos peixe morto. Ele já atendeu risonho, depois de engolir seu martini:
-Salve, minha Loira! Achei que vocÊ ainda tava lá nas ilhas Gregas... o que vai ser essa semana? "Peixes vai estar propenso a prosperar financeiramente" ou "sua lua em júpiter vai te proporcionar uma reviravolta amorosa"?
-Ah, Jonas... Snif... Nem me fale... É que, lá nas ilhas gregas, eu terminei com o Sílvio. Sabe, o Sílvio ministro?
-Aquele envolvido naquele escândalo?
-Ele mesmo.
-Então eu vou botar assim: "Peixes hoje vai sair de qualquer depressão em que tenha entrado e vai brilhar..." Daí vocÊ vai e arrasa lá na Baronette, mas antes deposita a quantia de sempre na minha conta, e...
-Você não entendeu, Jonas. Não é isso que eu quero. O Sívlio respeita muito o seu horóscopo... E eu quero que vocÊ ACABE com o Sílvio. Combinado?
-Ih, minha filha, pra falar mal o preço é acrescido de cinquenta por cento.
-Eu pago, eu pago.
-E qual é o signo do infeliz, querida?
-Capricórnio.

Opa, Capricórnio não.Aquilo era um problema. Desde que iniciara a sua "máfia", a única coisa que tinha permanecido exatamente igual era que ele falara sempre muito bem de Capricórnio. Coisa de suas relações com o seu primeiro cliente e padrinho, o Doutor Olímpio.

-Eu não posso, meu bem, capricórnio está fora de questão.
-Eu triplico o que eu ia te pagar.
-Minha Loira...
-Eu pago dez vezes o preço da tabela. Eu só quero foder com a vida do Silvio.
Era muito dinheiro. Ele, que tinha sido pobre e vivido numa casa cheirando a mijo a vida inteira, com esse dinheiro poderia se aposentar e abandonar a máfia, se dedicar a outros hobbies, torrar tudo num cruzeiro, sei lá. E além do mais, de uns tempos pra cá o Seu Olímpio andava meio sumido, só sabia que o velho não tinha morrido por que o dinheirinho dele continuava pingando todo mês na sua conta. Vai ver o velho não repararia, ele escreveria uma semana de coisas escabrosas sobre capricórnio e pronto, voltava ao normal.

-Combinado, minha loira.
-Você é um amor, Jonaszinho.
-Amor é o som do seu dinheirinho pingando, coração.

E Jonas, animado com o pagamento, fez um senhor trabalho, empolgado com o seu próprio talento. Muitos Capricornianos se suicidaram, tantas foram as desgraças que Jonas previu. O tal do Sílvio, transtornado com os escritos de Jonas, se embananou com os depoimentos que tinha que dar pra CPI do não sei o que e acabou preso por quebra de decoro parlamentar. Jonas estava rindo de orelha a orelha, checando na internet a sua conta bancária, inchada como um boi pronto pro abate. E era exatamente um boi pronto pro abate que o Jonas era, mas sem saber. Estava de noite. Uma noite sem nuvens naquela cobertura de frente pro mar.

E foi então que trovejou. MUITO alto.

- Você vai aprender a não brincar comigo, seu moleque.
-Caralho! Quem tá aí?

A primeira voz que falou vinha do alto, e era muito grave.A segunda era a de Jonas mesmo.

-Zeus está aqui. Zeus está em todo lugar. E aqui ele se manifesta contra quem achou que podia brincar com o seu culto.

Todas as luzes da casa de repente se apagaram.

CONCLUI NO PRÓXIMO EPISÓDIO!

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Uma intermitência do Morto

Escrito no calor da notícia da morte do Mestre José Saramago.


Não creio que tenhas morrido, depois de tornar-se íntimo da morte ao ponto de descrever-lhe as intermitências e as intimidades, Mas o fiz por que é o que se faz, e digo ainda que o fiz como quem pratica uma ação e não como aquele que está parado e a quem algo se sucede, Mas todos acreditávamos que a tivesse superado, que tivesse vencido a morte invencivel, Nunca foi minha intenção superar um que ou um quem, Críamos, pelo menos, que conhececes a morte bem o bastante para escapar, Não afirmo o contrário, E no entanto estás morto, Mas contigo aqui travo este diálogo, e estás vivo, É que apenas escrevo à tua maneira, imitando canhestramente teu famoso e inconfundivel modo de diálogo, E deste modo manifesto-me como sobrevivente da morte, sobrevivo assim nas letras que são a minha obra, ainda que não possa se dizer que estas sejam própriamente as minhas letras, Ainda uma vez nos ensina uma lição, Nada ensina aquele que escreve, antes faz o leitor relembrar algo que já traz em sí de íntimo, Como queira, Não acho que eu ainda alguma coisa queira, Já nada queres, Minto, quero, O que queres, Quero o descanso à beira do mar depois de ter finalmente zarpado da minha querida ilha de Lanzarote para esta outra em que estou agora, a um só tempo a mais desconhecida e uma velha amiga, A morte, A morte.




"Pela idade, há muito tempo que sou um velho. Mas só pela idade. Trabalho com a mesma vontade de sempre, a imaginação ainda não desertou de mim, compreendo melhor o mundo em que vivo, sou consciente do valor da vida, e, quanto à morte, ela chegará no seu dia, nem antes nem depois. Quem morre aos 20 anos, morre na sua velhice e não o sabia."


JOSÉ SARAMAGO

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Professor Olímpio contra o Horóscopo - Parte 2. "O Astrólogo"

Continuação da saga do professor Olímpio versus o Horóscopo. Afirmo aqui que esta é uma obra de ficção que não necessariamente expressa o pensamento do autor, mas que pode fazê-lo quando este bem (des) entender. Para ler o princípio, ver o post embaixo deste aqui. Aí vai:

Era princípio de noite e a casa onde morava o astrólogo, que se chamava Jonas, fedia a xixi de gato. O Astrólogo, que se chamava Jonas, suspirou. Releu o que havia escrito e continuou sem conseguir se convencer de que estava bom.

"Capricórnio. Hoje seu dia será absolutamente maravilhoso. Cheio de margaridas em flor. Todos os seus planos darão certo. Você estará especialmente sagaz, bonito, bem humorado e potente sexualmente. A semana: Não se preocupe, tudo dará certo. Se quiser, pode caçoar das pessoas de outros signos".

Já tinha um mês que era assim; O tal do velho ligava pra ele e dizia mais ou menos o que ele tinha que escrever no signo de capricórnio. Só coisas boas. Ele ia lá, escrevia, e aparecia um monte de dinheiro na sua conta bancária. Ele não fazia perguntas, tinha uma mãe idosa e com um problema urinário sério (que aliás era o que deixava toda a casa pequena onde os dois moravam com aquele cheiro horrivel), e a grana era mais que bem vinda. Em todo caso constantemente perguntava aos astros, em quem ele possuia sincera e ferrenha crença, o que poderia mover o velho a agir daquela maneira. As respostas destes não eram nunca conclusivas.

O astrólogo, que se chamava Jonas, tornou a suspirar. Desde criança ele sentia que possuia uma afinidade com as nebulosas forças astrais, e consumiu sempre vasta literatura sobre o assunto. Quando começou a fazer mapas astrais, fez alguns de graça para amigos mais chegados e todos (inclusive ele) ficaram surpresos quando viram que seu trabalho possuia surpreendente exatidão. Todos os seus amigos, que ele previra ricos e felizes, de fato o acabaram sendo. O único mapa astral que ele errara na vida fora, pasmen!, o dele próprio. O mapa que fizera pra si indicava uma vida adulta confortavel, morando num lugar alto, perto da praia e com uma grande quantia de água. Desde esse momento preparado para uma cobertura em Ipanema, o astrólogo, que se chamava Jonas, se surpreendeu quando acabou numa ladeira lá pros lados da praia do Caju (imprópria pra banho) com um desagradavel pântano no terrendo baldio ao lado. Como consolo para sí próprio ele dizia que não errara nos indicativos astrais, e sim na interpretação destes.

Estava perdido nesses devaneios quando o telefone tocou.

-Alô?
-Sou eu, o Professor Olímpio.
-Boa noite, professor.
-Pra quem? Tô todo fudido de dor nas costas.
-Tudo bem, professor. A lua está em peixes,isso vai curar todas as suas dores físicas.
-Vai a merda. Eu não acredito nessas coisas. Mas tenho uma sobrinha que tá em dúvida se casa com um rapaz ou não. E o rapaz é um imbecil, faz faculdade de Letras. Faz o favor de botar aí no signo de Virgem, que é o dela, para "Não acreditar em babacas metidos a poetas que venham tentar de comer e roubar a sua grana". Ela acredita muito nessas baboseiras.
- Esse não é o nosso trato! Eu combinei de alterar só o signo de capricórnio! Meu trabalho é sério, não posso ficar alterando as coisas só por que o senhor quer, isso aqui não é casa da mãe Joana.
-Por falar nisso, como é que vai a mijona da sua mãe?
-Olha aqui, seu Olímpio, eu tenho leitores, tehnho uma responsabilidade para com eles...
-Cê tem conseguido pagar direitinho o remédio dela agora?
-As pessoas no jornal podem começar a estranhar...

Do outro lado da linha, o Professor Olímpio suspirou. Com alguma imaginação conseguia até sentir o horrível cheiro de mijo.

-Bota o que eu te falei. Vai pingar mais dinheiro na sua conta esse mês.
-Eu não sou uma prostituta!
-Alías, tava pensando o seguinte. Uma das coisas que eu mais odeio no signo de capricórnio é esse fato dele ser meio cabra meio peixe. Que porra é essa? Isso é esculhambação de vocês astrólogos. Faz favor de mudar o desenho dele pra uma coisa mais bonitinha, combinado? Se quer minha sugestão, o desenho pode ser o de um labrador. É que eu tinha um labrador quando eu era criança.
-Seu... Seu Olímpio, isso é uma abuso...
-Me amarro num labrador.

Desanimado, o astrólogo, que se chamava Jonas, conseguiu demover o Professor Olímpio da idéia do Labrador, explicando aque aquele desenho da cabra meio peixe era uma imagem convencionada desde muito tempo pra mudar abruptamente. Mas teve que concordar em colocar uma inserção sobre não confiar em falsos amantes no signo de virgem.
Quando desligou o telefone e foi mais uma vez dar o remédio para sua infeliz mãe, o astrólogo, que se chamava Jonas, não imaginava o que estava para acontecer na sua vida.

Foi na semana seguinte que começou a mudança. O telefone tocou e ele achou que fosse Olímpio outra vez

-Professor?
-Que professor, rapaz? Você é o astrólogo do "Berro do Povo"?

Ele pensou que havia sido descoberto, gelou. Mas foi honesto.

-S...Sim.
-O homem que eu estava procurando! Eu sou o reitor da Universidade Federal, e um professor daqui andou falando muito de você. Eu gostaria de pedir um favor. O senhor é discreto, não? A minha esposa está entrando na menopausa, sabe como é, estou com medo dela perder o fogo dela, mas ela respeita muito o horóscopo. Quero que durante os próximos doze meses você coloque coisas luxuriantes no signo de peixes, ok? Pago adiantado. E muito bem.

O astrólogo, que se chamava Jonas, fez silêncio do outro lado da linha. Decidindo, talvez, se os pontinhos que brilhavam incessantemente na sua cabeça eram estrelas ou moedas.

CONTINUA NO PRÓXIMO EPISÓDIO

sábado, 29 de maio de 2010

Professor Olímpio contra o Horóscopo - PARTE 1. "O Jornal"

A pedidos, mais uma (ou mais meia, como se verá) do Professor Olímpio. Algo me diz que isso é o começo de uma saga.
Professor Olímpio dá aula de Topicos Elementares da Introdução á Teoria Ontológica na faculdade de Filosofia de uma importante universidade federal. Só que seu casamento com a filosofia já foram suas segundas núpcias, um amor de maturidade destinado a sanar suas dúvidas de velho, quem sabe uma conjuge destinada a cuidar dele no princípio de sua senilidade: Olímpio e a Filosofia nunca foram um par fogoso. Sua verdadeira paixão de juventude, aquela responsável por tantas descargas de adrenalina, ilusões e decepções, foi mesmo a política.
Olímpio, possuidor de farta coleção de quepes, blusas de botão e calças xadrez, além de cigarros hollywood, fora na mocidade um veemente militante da esquerda, e, homem estudioso que sempe foi, votou em branco em todas as eleições, desde aquelas para o centro acadêmico da faculdade até o pleito para presidente. Na velhice tornou-se moderado, rancoroso e com aquele amargor característico dos que viram quase tudo na vida e gostaram, vá lá, de uma ou duas coisas no máximo. Um dos poucos hábitos da mocidade que preservou no seu ocaso filosófico foi a ojeriza aos jornais de grande circulação("manipuladores! vendidos!"): Olímpio só lê "O Berro do Povo", um jornal desses que quando torce sai sangue mas que, há muitos anos, foi um quase importante jornal da esquerda.
Olímpio parecia não ter dado por essa mudança de linhe editorial até o dia em que seus olhos bateram numa coluna que até o dia anterior não era publicada: um horóscopo. Ficou sinceramente decepcionado com a novidade, pois como todo bom acadêmico considerava a astrologia uma besteira sem fundamento algum. Sentiu saudades do tempo em que aquele lado direito da terceira pagina era ocupado pelo colunista Bílio Bastos, articulista que depois pegara em armas no interior do Tocantins. Naquele instante, diante de seu farto café da manhã (ver conto anterior do Olímpio), Olímpio revisitou todo seu ódio diante do horóscopo, ódio esse que passa sim pelo cientificismo barato e pelo sectarismo de suas posições mas, como é sempre o caso de Olímpio, tem raízes muito mais profundas.
Olímpio, é preciso dizer, é do signo de Capricórnio. O leitor é desse signo ou conhece alguem que o seja? Capricórnio é o signo inventado, provavelmente, quando os gregos conseguiram onze signos excelentes, onze histórias zodiacais bacanérrimas e quiseram completar com doze... "pra ficar numero par". Sei lá. Já era fim de noite lá na grécia e os gregos tinham tomado muito vinho quando um babaca histórico soltou "Pô, bora fazer um bicho meio cabra meio peixe e fazer o cara que nasce nesse signo não ter nada de legal na personalidade dele". Todo mundo deve ter rido e topado. Malditos bêbados. Geraram pessoas como Olímpio, que sempre foi um amargurado na vida por ter amigos com signos legais como "leão" ou "escorpião", ou até o insossamente fofinho "peixes" e não poder partilhar da alegria deles. O capricórnio é o que? Pode perguntar pra um astrólogo.
-O Capricórnio é ambicioso com uma certa ganância, nada vai impedi-lo de alcançar seus objetivos, geralmente egoístas. Ele é racional, recluso (eufemismo para mal-humorado) e dissimulado.
Ah, legal, né? Que estimulante essa descrição. Imagine quantas mães devem ter querido "segurar" seus filhinhos na barriga para protege-los de nascer no famigerado mês de Janeiro, que faria deles capricornianos.
A mãe de Olímpio não teve esse cuidado e o pobre coitado nasceu justamente nos meados do primeiro mês do ano.
Pois Olímpio engoliu em seco a sua raiva e continuou comprando o "Berro do Povo", decido a ignorar o horóscopo e principalmente as referências ao seu signo. Claro que em poucos dias sua neurose o dominou e ele bateu o olho na parte proibida do jornal. Lá estava:


Capricórnio: Muito cuidado com a sua personalidade. Dome seus impulsos e evite magoar as pessoas com seus gestos descuidados e egoístas. Época ruim para relacionamentos amorosos e profissionais.

Olímpio ficou com uma raiva que há muito não o dominava (desde quando uma babá passsara com um carrinho de bebê por cima do seu pé, pra ser mais exato). Olímpio imediatamente catou seu quepe, seus cigarros e de pijama mesmo foi até a redação do jornal, decidido a tirar a limpo anos e anos daquela maldita opressão zodiacal. Pegou um ônibus morto de raiva, desceu dele quase espumando, entrou na redação do "Berro do Povo" assustando a pobre da recepcionista e berrou:

-Eu quero falar com a porra do astrólogo que faz aquela merda daquele horóscopo, caralho! E é melhor ele vir sozinho!

Por algum tipo dessas coincidências que só os astros explicam, o pobre do astrólogo estava exatamente deixando a redação naquele instante para ir almoçar, e ouviu os berros de Olímpio.

-Algum problema, senhor, eu sou o astrólogo do jornal. Alguma dúvida te atormenta, os astros podem ajudar em alguma coisa?

Olímpio olhou para ele. Seus olhos saltaram um pouco pra fora das órbitas e há testemunhas que afirmem que ele chegou a babar. Mas se o fez, se realmente deixou-se dominar assim pela raiva, num instante se conteve. Algo o fez racionalizar, provavelmente seu espírito essêncialmente classudo de professor universitário. Finalmente conseguiu falar.

-Quanto você quer? Pode falar, que eu tenho dinheiro. Quanto você quer pra começar a publicar coisas boas sobre capricórnio? Quanto você quer para reabilitar a imagem do meu signo?


CONTINUA NO PRÓXIMO EPISÓDIO

segunda-feira, 17 de maio de 2010

alô?

Mesmo sem receber um único mísero comentário desde sei lá quantos posts atrás eu ainda persevero nesse blog, conifante de que eu possuo leitores sim, só que todos leitores discretos que preferem não se pronunciar. Ok, sem problemas quanto a isso. Aproveito o ensejo, mudando de assunto, para exorta-los todos (quantos vocês são? três? cinco? mil? Laura, é só você?) para conhecer o outro blog para o qual eu contribuo, o blog da minha banda, o Pangaré Valente. www.pangarevalente.blogspot.com
Espero que seja do agrado de quem quer que queira agradar a sí próprio.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

MINHAS MEMÓRIAS ORNITOLÓGICAS DE IPANEMA

Lá onde eu nasci tudo era muito isso e aquilo, tal e qual. Da janela da sala se viam as janelas das salas dos prédios em frente, dos quartos e da cozinha via-se a favela do Cantagalo e, estranhamente, do basculante do banheiro você tinha uma vista perfeitamente emoldurada do morro Dois Irmãos sobre o Oceano Atlântico, o que no verão dava ao usuário do vaso sanitário um pôr-do-sol pelo qual muitos pagariam milhões. Lá onde eu nasci era uma Ipanema cheia de pássaros e sujeira, donde não faltavam pássaros sujos: Gaivotas sujas em “vês” assimétricos sobre o mar, galinhas sujas ciscando na favela e, os piores de todos, uma raça de pombos mutantes sujíssimos e tristíssimos, que na bizarra coloração de cinza arroxeado infestavam (até hoje infestam) a cidade e especialmente aquele bairro. Aquela Ipanema.

Um dia a empregada me disse que no alto do morro, pra depois dos barracos, morava um gavião. Não acreditei.

Um outro dia, noite de tiroteio, uma bala entrou pela janela e acertou a cama do meu tio, perfurando o colchão bem no ponto em que, não fosse noite de sexta feira, sua cabeça estaria dormindo. Uns meses depois explodiram uma granada por lá, e eu, que tinha ido dormir na sala pra não ter o mesmo destino do colchão do meu tio, vi a luz daquela explosão refletida no prédio em frente. Mais um tempinho, eu na segurança da casa de campo em Paty d’Alferes, vi a minha rua ser capa do globo, por motivo de mais um dos tiroteios. Foi a gota. Matamos a vida que tínhamos lá em Ipanema e fizemos nascer outra em Copacabana, a vizinha mais velha, mais kitsch e mais cheia daqueles pombos.
Lá em Copacabana os pombos não têm medo quando você corre atrás deles e eu, sem ter muita consciência, virei adolescente: ganhei penugem e criei meu primeiro par de asas. Ipanema, sua claridade acachapante, virou uma burguesa chic à ser combatida (tive formação vicentina) , um lugar para nunca mais voltar. É claro que, na curiosa geografia de mim e dos meus, o posto nove era como se não fosse Ipanema. Era permitido para banhos de mar, contemplação das fêmeas e, no caso de alguns mais corajosos que eu, experiências com os baseados que por ali circulavam. Como chegar até lá, se Ipanema era território proibido? Nós, gaivotamente, íamos voando.

(Às vezes, mijando no mar, eu olhava pro morro Dois Irmãos e me sentia no velho apartamento).

Passaram-se os anos e eis-me aqui, de volta a Ipanema. Não na condição de morador, mas namorando uma menina do bairro. Finalmente, depois de tantos anos, Ipanema adquiriu para mim as formas de mulher curvilínea que ela tem para o resto do mundo. Já não mais a Ipanema da minha infância, visto que a praça Nossa Senhora da Paz está irreconhecivelmente suja e a Praça General Osório está irreconhecivelmente limpa, nem a Ipanema burguesa neo-liberal, podre, retrógada etc. etc. etc. O bairro agora é onde mora o amor e onde moram os amores. Ipanema Zen, clichê do bem, bossa-nova cool. Como a namorada mora na cobertura, não há pombos.
Uma noite dessas, eu estava na varanda da namorada, contemplando (longe e segura) a pacificada favela do Cantagalo. Obriguei-me a reconhecer como de noite ela é de fato bonita, ouro sobre o azul escuro. Talvez como um rito de passagem da vida, ou, por outra, um sinal de tréguas, ou ainda por motivo nenhum, do nada, aconteceu um gavião. Pousado no gradil do prédio em frente. O gavião. Sereno, altivo, majestoso (acho que castanho), era um bicho que sei lá como se descreve. A antítese de um pombo, quem sabe. Fiquei quietinho, espreitando seus poucos movimentos até que ele abrisse as suas asas e sumisse na noite, rei do bairro, planando na direção do seu ninho no alto do morro. Não me dirigiu palavra, acho que se falasse algo diria “nunca mais”, mas eu, que nem sei por que comecei esse texto, não saberia o significado disso. Daí simplesmente fui lá voando atrás dele.