sexta-feira, 23 de novembro de 2012

NÓS EM JERUSALÉM




Escrevo pensando em recentes acontecimentos da minha vida pessoal, e em um livro que eu li também recentemente. Sobre os acontecimentos não cabe ainda comentário, mas o livro em questão é Eichmann em Jerusalem, um longo ensaio jornalístico de Hannah Arendt sobre o julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann, arquiteto do holocausto. O momento chave do texto, creio, é aquele em que Arendt nos fala dos juízes e do público do julgamento, que, ávidos e curiosos para ver um “gênio do crime”, ou “uma mente extraordinariamente maligna”, se deparam na verdade com um burocrata medíocre. Segundo o Arendt, tudo o que Eichmann foi capaz de dizer em sua defesa passou por repetir que “seguia ordens”, ou "fazia o mesmo que todos". Incapaz de formular um pensamento por si mesmo, o responsável pela morte de milhões de judeus apenas repetia as palavras de outros e citava a todo momento jargões e frases feitas. Muito embora o personagem clássico do nazista na ficção seja alguém extremamente cruel, frio e sádico,  Arendt compreende que a grande maldade do nazista da realidade é a recusa em pensar por si próprio. Dessas conclusões a autora cria o conceito de “banalidade do mal”, que eu gosto de pensar que também pode ser entendido como “mal da banalidade”.
Vejo da seguinte forma: Pensar que o mal depende de uma mente deturpada, apodrecida, diferente das comuns é uma forma de, uma vez que sempre nos julgamos “normais”, nos distanciarmos da possibilidade de nós mesmos praticarmos o mal. Daí a facilidade com que, ao longo da história, facilmente atribuímos o mal aos mais diferentes dentre nós, marginais por sua raça, sua renda, sua orientação sexual, sua saúde, ou mesmo suas opções estéticas. Não é preciso muito para que se condene alguém que, entre pessoas de terno, use uma roupa não usual. Ou que, entre professores de determinado saber, ensine algo diferente. Como vivemos em tempos mais civilizados que o de Hitler, todos se apressarão em dizer que nada tem contra essa pessoa “diferente”, mas suponhamos um caso fictício, passado num mundo e numa época exatamente iguais aos nossos, e o meu ponto ficará mais claro.
Suponhamos um personagem que seja diferente dos demais, cujo nome seja justamente Diferente. Imaginemos agora que surja um rumor, ou até mesmo uma denúncia, de que Diferente tenha cometido um crime. Nesse momento, repentinamente se descortina algo que antes estava velado: quando acusado, Diferente não terá a mesma presunção de inocência que os outros, pois antes que os dispositivos legais sejam acionados, a opinião pública já o terá execrado.  Mesmo Diferente sendo dotado de plenas faculdades físicas e mentais, não será necessária a sua presença para que ele seja julgado, diagnosticado e nomeado um crápula. E quem fará isso não será uma entidade sem nome ou rosto, antes o farão seus pares, agindo como pequenos Eichmanns. Estes se apressarão em corroborar o discurso comum e colaborar contra Diferente. Não por algum senso de justiça, mas por que é fácil fazê-lo. Muitos dirão que, embora tenham ficado quietos e tenham até mesmo sido amigos de Diferente, no fundo sempre souberam que havia “algo estranho com ele”. Puxarão pela memória até encontrar um fato qualquer que, agora sob nova luz, parecerá prova cabal de que o Diferente é um ser perigoso e maligno. Outros, covardes entre os covardes, mesmo compartilhando da diferença que Diferente possui, serão os primeiros a mudar de lado e incorporar-se ao coro dos comuns. Fatos que tornem mais provável a culpa de Diferente virão à tona, e outros que pareçam inocentá-lo serão diminuídos. O que a todo custo se tentará evitar, claro, será dar voz ao acusado. Num mundo de Eichmanns que repetem frases feitas e falas prontas, não se pode correr o risco de que Diferente possua um discurso diferente.
Eventualmente, embora todos os prognósticos apontem para o contrário, a situação pode resolver-se de forma favorável a Diferente. O mais provável é que Diferente seja penalizado, excluído da sociedade e preferivelmente morto, mas também pode ser que se prove que Diferente não tenha cometido o crime, e sim outra pessoa. Pode ser, ainda, que se prove que o crime em questão não tenha acontecido, não passando tudo de uma mentira inventada por alguém. Nesse caso, o mal para de emanar de Diferente e passa a emanar do mentiroso. Imediatamente a única suspeita possível para a resposta da pergunta “onde está o mal?” torna-se a pessoa que inventou o rumor, ou que fez a falsa denúncia. Há os que vão pensar que essa pessoa sim é o gênio do crime, a mente podre e depravada que o tempo todo se escondera. São burros os que pensam assim, e estes colaboram para o estabelecimento de um ciclo vicioso. Não existe a figura do gênio do mal.
Não me entendam errado. Naturalmente existem coisas como a crueldade e a ambição desmedida, mas elas não são características de mentes doentes. Se há hospício, somos nós os dignos dele, como concluiu o famoso alienista de Machado de Assis. A origem do mal é a mesquinharia cotidiana de cada um, a nossa burrice, nossos preconceitos, a facilidade com que aderimos a um discurso que pareça confortável, por absurdo que seja em essência. Por isso elegemos pessoas que sabemos estarem mentindo, por isso acreditamos em pseudo-cientistas que não apresentam evidências e por isso contorcemos nossa fé em obediência a sacerdotes que sabemos não ter fé alguma. Por isso, principalmente, obedecemos quem não teria o direito de mandar em nós e por isso, diga-se logo, passamos mais tempo do nosso dia obedecendo do que fazendo qualquer outra coisa. Na pequena história inventada por mim nesse texto, mas tão real quanto cotidiana, aquele que inventou um falso rumor sobre Diferente não é mais mal que aquele que somente disse “eu sempre soube que havia algo estranho”. São ambos indiferentes, e iguais.

Eichmann.

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