sábado, 14 de abril de 2012

O VELHO E OMAR

O VELHO E OMAR

Por Breno Góes.

Eu ouvi falar do Omar Salomão antes de ouvir falar do seu pai, Waly Salomão. O Waly, imenso poeta, pra mim é antes de tudo o pai do Omar, imenso poeta. O Omar berra poemas no meu ouvido, graças a essa maravilha do MP3, desde que eu tinha quinze anos e me apaixonei por essa banda extinta, mas nunca acabada, VulgoQuinho&OsCara. O Waly veio depois, com os estudos, a paixão por poesia e esses lugares comuns do desenvolvimento de um cara que faz Letras. O afeto primeiro é mesmo pelo Omar. Tudo o que eu disser aqui eu peço humildemente pra que seja entendido pelo prisma da grande admiração que tenho por esse cara.

A culpa do que eu vou contar é, antes de tudo, do Rodrigo Cascardo. Foi ele que escreveu uma tese sobre o amadorismo na contemporaneidade e trouxe o fogo, que queima quando clareia, pras minhas ideias. E ainda por cima me convidou pra defesa. Honra indescritível. Tudo o que eu mais amo na zona sul da minha cidade estava representado na sala daquela defesa de dissertação: os Dentes, os Irmãos Brutos, o Qinho, a faculdade de Letras, a Adriana Maciel, o NELIM, Omar Salomão... pra não falar do próprio Rodrigo, o grande Casca. Foi na defesa dele que eu entendi, mas muito também pelas palavras do Miguel Jost, que esses meus ídolos são uma geração coesa, com ideias próprias, um projeto lindo e terrível: superar tudo o que resta de ranço modernista no Rio, no Brasil e no Mundo. Implantar, como se já não estivesse implantado o suficiente, o caos do pós-moderno. Assistindo o falar seguro e azeitado, mas propositalmente fragmentado e abstrato, de todos eles, eu tive a certeza de que eles vão conseguir. Pior pra mim, que ao invés de ser pós-moderno me identifico com esse velhote que morreu ontem, o moderno. Estou ferrado.

O ritual todo de mestração do Casca, lindo, se encerrou com uma frase fortíssima do Miguel Jost sobre abolir os artigos definidos, coisa que, sem ironia, me pareceu definidora. A síntese de um projeto coletivo. Foi a deixa pra irmos todos pro Astro-Bar, ali perto do planetário. É importante ressaltar que até então na minha cabeça os incendiários eram, sobretudo, o Miguel e o Casca. Além, claro, da presença quase palpável do incendiário-mor Ericson Pires. Enfim, tudo isso pra dizer que eu nem desconfiava d’Omar. Omar estava calmo, sem dizer palavra, enquanto eu, igualmente taciturno, mastigava débeis pensamentos que eu vim construindo na minha cabeça. Minha paupérrima defesa do pó moderno diante do pós-moderno.

Enfim, comemos, bebemos e rimos.

Nesse ponto a memória vacila, pisca, falha, e o flash seguinte já pega a minha querela com o Omar in media res. Sem que eu saiba dizer como nem por que, estávamos inflamadamente discutindo a identidade do autor. Eu estava repetindo, pra variar, o meu já gasto discurso de que é falho analisar uma obra pelo contexto em que ela foi produzida, por que esse raciocínio em última análise ia nos colocar diante de categorias absurdas, como “Literatura-negra-lésbica-judia”, o que era um condicionamento prejudicial do autor. O Omar falou que era impossível o autor fugir da sua identidade de origem. Presumivelmente o mesmo raciocínio era extensivo ao leitor. Eu disse que essas identidades eram todas inventadas, o cara tinha que ter a liberdade de, se quisesse, ser preto e nazista. Escândalo na mesa. O mestre Júlio Diniz me deu um “pedala Robinho”. O Qinho pra sempre se desiludiu comigo. Omar me chamou de Alga. Disso eu gostei. Alga d’Omar.

Brandi, contra ele, Paulo Henriques Brito e Borges. Ele brandiu de volta Antônio Cícero e... Borges. Nós dois admiramos os quatro autores que acabo de mencionar, então os golpes foram todos pouco efetivos. Ele disse que o Borges se dizer Inglês era uma máscara que escondia uma intensa e profunda argentinidade. Eu disse que a máscara do Borges escondia uma intensa e profunda coisa nenhuma. Não com essas palavras, é claro. Vale dizer que com essa minha parca prosa estou tirando muito da eloquência das palavras d’Omar e colocando muito mais nas minhas, uma injustiça imensa. Nessa hora eu intimamente lembrei que o personagem que estava faltando naquela Astro-mesa de bar era o Frederico Coelho. O Fred teria as palavras certas pra acabar de vez com meus modernismos tardios. Já fez isso sistematicamente nas duas ocasiões em que eu tive aula com ele. Omar, que como poeta é uma máquina de ressignificar palavras, disse que quando uma pessoa só sabe discutir berrando esse ato é chamado de Brenar. E como, e quão intensamente, eu brenei nessa noite...

Fera ferida, apelei para as minhas últimas forças argumentativas. Bradei que eles tinham medo de discutir a forma. Que a forma era uma senhora esquecida mas ainda enxuta. Omar disse que a discussão da forma era vazia. Eu só pude concordar, apreciador que sou dos vazios. Eu disse que a forma era a discussão mais importante do modernismo, e o Omar quase chorou de desgosto percebendo o quão perdida estava a minha geração. Por respeito ao Gus Levy dos Dentes, que tem a minha idade, ele não disse nada sobre isso. Eu estava sozinho. Sozinho de um jeito que só falava mesmo por não ter como voltar a trás, já que intimamente eu sabia que estava diante dos melhores e mais implacáveis adversários possíveis nessa questão toda. Gente que tinha estudado anos pra demolir discursos como o meu. Devia era ter virado pro Omar e dito que sim, ele que se conformasse por que a minha geração estava irremediavelmente perdida. Dessa vez fui eu que fiquei quieto em respeito ao Gus. Ao invés disso, soltei meu extertor final para ser definitivamente sepultado pelo Casca, que como foi o cara que começou a minha via-crucis também tinha que acabar com ela:

EU: Eu quero fazer uma análise formal do Ventura, do Los Hermanos. Acho que falta isso. Uma análise verso a verso. Eu não tenho medo do difícil.

CASCA: Isso não é difícil. É só inútil.

E o resto foi silêncio, pra mim.

Omar voltou a ficar tranquilo, nada nele adivinhava o meu recente naufrágio. Me restava melancolicamente terminar a cerveja, pagar e pegar o ônibus. E escrever esse negócio, claro. Mas o que eu tenho mesmo pra dizer é: Deste lugar de pó moderno dissolvido n’Omar de pós modernos, eu só posso mais uma vez reconhecer a grandiosidade, e a generosidade ao conversar comigo, de todos esses: O Júlio, O Fred, A Adriana, O Miguel, O Casca, O Qinho, O Gus, O Ericson e, claro... Omar. Ainda gosto dos artigos definidos, que me perdoe o Miguel. Tenho, e muitos modernos e moderninhos têm, que ler o que eles tem produzido, beber deles e com eles. Pra não falar da Santuza. Como não falar da Santuza? Por cima e por dentro das dores, os tempos são de vitalidade na PUC e no Rio, graças a gente como eles. Gente muito inteligente e coesa, por que a solidão apavora. Nessa noite eu entendi que eu sou, embora menos sábio, muito mais velho que Omar.

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