quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Cem Peças de Ouro, Parte II. "O Ladrão"

Mais uma fatia da tradução que venho realizando. Parece, a princípio, muito desconexa da anterior, mas o conto Santo-Marense tem como tradição diegética esse abrir de várias perspectivas que só no final se re-entrelaçam, construindo um todo coerente.

Tem lugares que só podem ser entendidos mesmo de noite. Se tivesse chegado a Santo Mar durante o dia, o fugitivo Antão teria certamente estranhado a vegetação espinhuda e dura que tornava tão difícil o acesso à Praia do leste. Nada de lambidas úmidas de folhas largas e molengas, somente a resistência quebradiça de galhos, espinhos de cactos e vez por outra um cipó que se amarrava em seus pés. Sentiria falta de certa umidade característica às matas perto do mar, e por fim teria um medo imenso da proximidade que aquela trilha parcamente aberta tinha com o despenhadeiro à esquerda de quem vai em direção a praia.

O que ocorre é que não era dia, e como se verá nem poderia ser, no momento da primeira chegada de Antão nas terras Santo-Marenses. E por não ser dia é que ele compreendeu num instante tudo. Compreendeu o caráter engolidor do mato, consonante com a escuridão num dueto que combinava para escondê-lo de seus perseguidores. O mato duro fazia o tempo todo pequenos “crec-crec” conforme ele avançava, mas nada semelhante ao farfalhar denunciador que faria uma mata das molhadas. Antão compreendeu tudo, e abençoou o caminho que seus pés haviam tomado, abençoou o mato e fez uma prece sussurrante para as estrelas, que se deixavam ver bem por entre os galhos finos que cresciam mais altos que um homem sem, no entanto, abobodar.

Foi aí que deu com o cemitério. Assim, num de repente, enquanto corria, Antão viu sumir todo o mato e se abrir um descampado. A luz da lua permitiu ver que estava cheio de lápides. “A menos que eu me apresse, daqui a pouco vou estar vendo esse cemitério do ponto de vista de lá de baixo”, pensou Antão. Antão, não sei se eu já disse, estava sendo perseguido, desde a manhã daquele dia, e ainda que seja personagem simpaticíssimo que provoque afeição a todos, há que se dizer que estava sendo perseguido com justiça: Antão é um gatuno, e havia roubado dos cofres da prefeitura de Deltaclar, cidade vizinha, razão pela qual os guardas o vinham caçando desde antes do almoço. “Não dá jeito. O ouro que eu roubei é muito, é muito pesado. Cem peças de ouro foi um exagero.Devia ter melhor considerado a questão do peso.”

Fez as contas. Os Guardas, que vinham a cavalo, tinham estado prestes a alcançá-lo quando ele tomara o caminho das escarpas à beira mar, só acessível a pé. Aquilo lhe devia ter dado uma dianteira de meia hora. Meia Hora. Era preciso pensar rápido, devia esconder o ouro para o vir buscar depois, estava claro, mas onde? A terra ali não era simples de cavar assim, com as mãos, e picaretas, pás... Essas coisas não havia. Num átimo, se iluminou. Era um cemitério, se houvesse ali um morto recente a terra devia ainda estar mexida. Rastejando, para melhor se ajudar com suas mãos e pés, Antão começou a procurar avidamente, na pouca luz que a lua proporcionava, um retângulo que houvesse de terra fofa.

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