segunda-feira, 18 de outubro de 2010

GILBERTOS

Queridos amigos, ando desanimado em continuar a história das "peças de ouro". Ela está todinha na minha cabeça, mas ando sem saco de escrever. Nesse meio tempo pensei em escrever algumas coisas sobre as eleições, mas a quantidade de chatices que eu tenho recebido é tão grande e o nivel das campanhas está tão ridiculamente baixo que eu me desanimei disso também. Mas isso no fundo até que é bom, por que essa conjunção me animou a escrever sobre uma coisa que eu gosto muito mas sobre a qual eu raramente paro pra pensar de forma "analítica": Música! Espero que vocês leiam e gostem, especialmente por que, entre Ians, Gustavos, Suts, Brancos e Lauras, quase todos os leitores desse blog são violonistas.

















Gilbertos.

O Caetano escrevendo quase sempre é uma desgraça, mas ainda assim eu tenho o bom hábito de ler quase tudo que ele escreve. A pessoa, quando faz isso, pode encontrar algumas pérolas a princípio escondidas no mar de frases de efeito e achismos que é a sua prosa. Esses dias, assistindo pela milésima vez o DVD “Banda-dois” do Gilberto Gil (que é sobre quem eu quero falar, na verdade) eu me dei conta de que concordava em parte com uma frase contida no “Verdade Tropical” com a qual eu a princípio discordara veementemente. Cito aqui o trecho em questão:

“De todo modo, parece-me que minha escolha indica que o mais importante do violão brasileiro se passou nas revoluções aparentemente despretensiosas de autores-cantores que usavam o instrumento apenas para ‘se acompanhar’ do que no concertismo mais ou menos brilhante dos solistas”

Claro que eu, por princípio, deveria discordar do que foi dito. Sou filho de um grande violonista clássico, por conta de quem conheço alguns grandes nomes do meio, e entendo que essa frase despreza sumariamente a contribuição de gente como o Duo Assad, Egberto Gismonti e Carlos Barbosa Lima, só pra citar alguns dos meus solistas prediletos. Quando assisti o DVD do Gil, no entanto, compreendi finalmente o que o Caetano queria dizer. Mantenho minha posição de reverência aos solistas aqui citados, mas agora vejo que há na música popular, em que o violão é acompanhamento, um desenho tortuoso que faz toda uma trilha de relações possíveis entre os paradigmas COMPOSIÇÃO x INTERPRETAÇÃO, e que essa relação pode tranquilamente ter sido o fato “mais importante do violão brasileiro”.

Comecemos por João Gilberto. Não que a história do violão de acompanhamento pré-João Gilbertiana não seja interessante, mas é em João que toda uma tradição de meneios e floreios do violão de samba é finalmente sintetizada em uma estrutura ascética e claramente delineável: a famosa “batida” da bossa nova. João limou da estrutura rítmica de seu samba tudo o que não fosse absolutamente essencial, chegando a uma estrutura mínima tão potente que só pode ser explicada como um novo gênero musical (ainda que João tenha dito e repetido que o que ele faz é simplesmente samba). Violonista e cantor de virtudes únicas, João Gilberto não foi um compositor prolixo, assinando apenas “Bim-bom”, “Ho-ba-la-lá” e alguns temas instrumentais, sendo a sua maior virtude a sub-versão de músicas de outros compositores, que em suas mãos revelavam-se e adquiriam novas faces antes insuspeitas.

Despretensiosamente, vamos ouvir e pensar. Quais são alguns dos caracteres fundamentais do violão de João Gilberto? A batida, claro, é a pedra base. A harmonia complexa também não pode ser esquecida, e a relação sincopada entre a instrumentação e a voz talvez seja o terceiro fator mais importante. Esses três dados atravessam de forma vertical praticamente toda a obra de João, criando uma relação em que a música a ser tocada se submete a uma linguagem do músico. Sambas, Bossas, Choros, Boleros, Baladas, toques de candomblé... tudo isso, quando tocado por este músico, ganha a batida, as harmonias complexas e a síncope. O violão de João é assertivo, masculino: em João Gilberto, o músico prevalece sobre a música.

Ora, se pensarmos que João é reconhecidamente a grande influência de gente como Chico Buarque, Edu Lobo, Jorge ben, Roberto Carlos e os próprios Caetano Veloso e Gilberto Gil, e se pensarmos ainda que tudo o que aconteceu posteriormente na música popular brasileira teve influência de alguma dessas figuras, podemos assumir que João inaugurou uma tradição, e não há dificuldade de entender que muito disso se refletiu na forma de tocar o violão por parte dos brasileiros e brasileiras. Penso agora em três exemplos de seguidores claros de João: Jorge ben, João Bosco e Lenine, três violonistas que desenvolveram suas próprias batidas (todas geniais, diga-se), submetendo a elas um variado escopo de músicas.
Pois bem. No DVD “Banda Dois”, do Gil, eu me dei conta de que essa tradição tinha dado origem a uma contra-tradição tão poderosa quanto. Acredito que Gilberto Gil (que ouviu muito João Gilberto) tenha sido o grande responsável por essa mudança de paradigma, mas reconheço traços dessa contra tradição também no violão de Guinga, por exemplo. Mas o que seria essa contra-tradição? Explico-me. O DVD do Gil, que mostra ele quase o tempo inteiro sozinho com seu violão, é uma jóia para qualquer um que ame o instrumento: Gil enxerga a canção antes de enxergar o arranjo, submetendo este a esta. A cada faixa a sua forma de tocar muda radicalmente, sempre para incorporar soluções novas e inventivas que possam dar vazão a algum traço daquela canção específica. É impressionante que a forma curiosa de usar as cordas soltas em “Refazenda” tenha vindo da mesma cabeça da harmonia acompanhada de linha de baixo de “Esotérico” e é mais impressionante ainda que ambas sejam obras do mesmo violonista que compôs a mão direita nervosa de “expresso 2222”. O violão de Gil é passivo para que a música o oriente, assertiva. É feminino como a porção mulher da canção “Super-Homem”. É a música guiando o músico.

Compreendo melhor, a partir de um diálogo entre essa tradição e dessa contra-tradição do violão brasileiro, o momento que o instrumento vive hoje na música pop, nas mãos responsáveis de gente como Chico Cesar e Paulinho Moska. Esses, como o próprio Caetano Veloso, são violonistas que equilibram suas “batidas” pessoais com determinadas invenções guiadas pela música que eles estão tocando, gerando peças de rara beleza e grande inventividade. Se muitas dessas interpretações, como grande parte das linhas de violão feitas por Gil, são assombrosamente simples, só quem ganha é o amador que, como eu, busca beber nas águas dos grandes mestres. João Gilberto e Gilberto Gil, o masculino e o feminino, me fizeram entender que a música pop é sim um terreno muito fértil para a invenção violonística, seja com uma postura assertiva ou passiva diante da canção, e é inspirador seguir a linha evolutiva do instrumento por eles escolhido. Sem demérito algum para os nossos grandes solistas (viva os Assad!) eu passo a ver essa dialética entre os Gilbertos como, sim, o “mais importante do violão no Brasil”.

2 comentários:

  1. dissertar é sempre um acerto - ainda mesmo em casos como o de caetano veloso.

    não podemos esquecer os mineiros, breno! cadê lô borges, milton nascimento, beto guedes?

    achei esse post curioso, porque estou me interessando em tocar bossa... que coincidência, não?

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  2. pelo que eu saco dos mineiros eles jogam mais no time do Gil... mas confesso que conheço pouco deles em termos de violão. Sei que o Milton e o Wagner Tiso são feras no piano.

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