quinta-feira, 6 de maio de 2010

MINHAS MEMÓRIAS ORNITOLÓGICAS DE IPANEMA

Lá onde eu nasci tudo era muito isso e aquilo, tal e qual. Da janela da sala se viam as janelas das salas dos prédios em frente, dos quartos e da cozinha via-se a favela do Cantagalo e, estranhamente, do basculante do banheiro você tinha uma vista perfeitamente emoldurada do morro Dois Irmãos sobre o Oceano Atlântico, o que no verão dava ao usuário do vaso sanitário um pôr-do-sol pelo qual muitos pagariam milhões. Lá onde eu nasci era uma Ipanema cheia de pássaros e sujeira, donde não faltavam pássaros sujos: Gaivotas sujas em “vês” assimétricos sobre o mar, galinhas sujas ciscando na favela e, os piores de todos, uma raça de pombos mutantes sujíssimos e tristíssimos, que na bizarra coloração de cinza arroxeado infestavam (até hoje infestam) a cidade e especialmente aquele bairro. Aquela Ipanema.

Um dia a empregada me disse que no alto do morro, pra depois dos barracos, morava um gavião. Não acreditei.

Um outro dia, noite de tiroteio, uma bala entrou pela janela e acertou a cama do meu tio, perfurando o colchão bem no ponto em que, não fosse noite de sexta feira, sua cabeça estaria dormindo. Uns meses depois explodiram uma granada por lá, e eu, que tinha ido dormir na sala pra não ter o mesmo destino do colchão do meu tio, vi a luz daquela explosão refletida no prédio em frente. Mais um tempinho, eu na segurança da casa de campo em Paty d’Alferes, vi a minha rua ser capa do globo, por motivo de mais um dos tiroteios. Foi a gota. Matamos a vida que tínhamos lá em Ipanema e fizemos nascer outra em Copacabana, a vizinha mais velha, mais kitsch e mais cheia daqueles pombos.
Lá em Copacabana os pombos não têm medo quando você corre atrás deles e eu, sem ter muita consciência, virei adolescente: ganhei penugem e criei meu primeiro par de asas. Ipanema, sua claridade acachapante, virou uma burguesa chic à ser combatida (tive formação vicentina) , um lugar para nunca mais voltar. É claro que, na curiosa geografia de mim e dos meus, o posto nove era como se não fosse Ipanema. Era permitido para banhos de mar, contemplação das fêmeas e, no caso de alguns mais corajosos que eu, experiências com os baseados que por ali circulavam. Como chegar até lá, se Ipanema era território proibido? Nós, gaivotamente, íamos voando.

(Às vezes, mijando no mar, eu olhava pro morro Dois Irmãos e me sentia no velho apartamento).

Passaram-se os anos e eis-me aqui, de volta a Ipanema. Não na condição de morador, mas namorando uma menina do bairro. Finalmente, depois de tantos anos, Ipanema adquiriu para mim as formas de mulher curvilínea que ela tem para o resto do mundo. Já não mais a Ipanema da minha infância, visto que a praça Nossa Senhora da Paz está irreconhecivelmente suja e a Praça General Osório está irreconhecivelmente limpa, nem a Ipanema burguesa neo-liberal, podre, retrógada etc. etc. etc. O bairro agora é onde mora o amor e onde moram os amores. Ipanema Zen, clichê do bem, bossa-nova cool. Como a namorada mora na cobertura, não há pombos.
Uma noite dessas, eu estava na varanda da namorada, contemplando (longe e segura) a pacificada favela do Cantagalo. Obriguei-me a reconhecer como de noite ela é de fato bonita, ouro sobre o azul escuro. Talvez como um rito de passagem da vida, ou, por outra, um sinal de tréguas, ou ainda por motivo nenhum, do nada, aconteceu um gavião. Pousado no gradil do prédio em frente. O gavião. Sereno, altivo, majestoso (acho que castanho), era um bicho que sei lá como se descreve. A antítese de um pombo, quem sabe. Fiquei quietinho, espreitando seus poucos movimentos até que ele abrisse as suas asas e sumisse na noite, rei do bairro, planando na direção do seu ninho no alto do morro. Não me dirigiu palavra, acho que se falasse algo diria “nunca mais”, mas eu, que nem sei por que comecei esse texto, não saberia o significado disso. Daí simplesmente fui lá voando atrás dele.

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