Há muitas histórias sobre a cidade de Santo Mar. Conta-se que ali houve o único caso no mundo de uma ditadura movida por razões Literárias, por exemplo, um "causo" contado na peça "Das Águas que Vem de Lá". É fato sabido também, entre os estudiosos do tema, que hoje a cidade não existe maispor causa de uma experiência mal sucedida de um bruxo daquelas bandas, que transformou toda a areia da praia em vidro. O escrito que se segue agora, um episódio pitoresco do tempo em que Santo Mar era pouco mais que uma aldeia com casas de madeira, chegou até mim por carta, enviado por uma ex-namorada geóloga. Ela, sabendo do meu interesse por esses assuntos, me enviou um pacote contendo antiquíssimas placas de argila com escritos em grego, e uma carta explicativa. Porém, furioso que eu estava com o fim do nosso namoro, rasguei a carta explicativa, que provavelmente continha informações cruciais sobre o local onde essas placas foram encontradas e, portanto, sobre onda ficava Santo-Mar. Quando voltei a mim, muito envergonhado, vi que só tinham me restado as placas em sí para traduzir e publicar aqui, como se fossem peças de ficção. Meu conhecimento de grego antigo é vergonhoso, por tanto não garanto que tenha feito uma boa tradução, mas acho que produzi uma obra no mínimo agradavel de ser lida. Aos que, como eu, continuam pesquisando o passado de Santo-Mar, digo para não perdermos a esperança de provar a existência dessa fantástica cidade, procurando documentos, artefatos e depoimentos que dêem credibilidade científica ao que até hoja é mera especulação.
Começa assim a históia que eu traduzi das placas:
Nem sempre o povo de Santo Mar foi próspero no comércio com as cidades estrangeiras, e nem sempre criou-se, nessa cidade, o boi, o porco e a galinha. Muito antes disso, e antes também que a cidade fosse murada com pedra, todos comiam quase que exclusivamente o peixe que o mar trazia. Na verdade o mar não tinha costume de trazê-lo assim como quem entrega algo de graça, por isso foi necessário que os homens fortes e bronzeados daquele tempo aprendessem as artes da pesca.
Era costume das casas que cada varão, ao completar quinze anos, construísse seu prório barco e se lançasse na Praia do Leste para pescar os Peixes Grandes. Essa praia era de mar aberto, e era considerada perigosa. Quando o homem completava cinquenta anos, podia parar de ir para a Praia do Leste e ir para a Praia do Oeste, na verdade uma enseada, onde as águas eram calmas. Esse homem já tinha provado seu valor e podia descansar. Lá ele podia pescar pequenos peixes, ensinar os mais novos os seus segredos com a vara e a rede, ou simplesmente passar as manhãs e tardes no raso bebendo o destilado de côco que as mulheres de Santo Mar produziam com tanta arte e esmero.O Pai de Amora tinha quarenta e nove anos e trezentos e sessenta e quatro dias quando pegou o barco naquela manhã, pensando "Ainda bem que é a última vez". Ele não via a hora de se aposentar das vagas perigosas do mar aberto, já estava cansado de arrancar do mar o que este tinha de mais precioso, que eram os Grandes Peixes. Não. Ele queria fazer as pazes com o mar, e já se via boiando na praia do Oeste compondo músicas para o mar, o mar que seria agora seu melhor amigo, e não mais seu poderoso inimigo. O Pai de Amora arrastou o barco da areia até a água.
Não se sabe se o Mar concordava ou discordava muito do Pai de Amora, mas qualquer que fosse seu ponto de vista, ele se fez ouvir com excessiva eloquência. Fosse para abraçar com mais vigor o pescador, fosse para puni-lo pelos peixes pescados, naquele dia o mar fez cair uma tempestade tal que as ondas ficaram maiores do que casas e os ventos ficaram mais rápidos do que pensamentos. O cruel é que a chuva só se deu em alto mar, e bem no ponto em que estava pescando o Pai de Amora. Ninguém na cidade sentiu um pingo da'água que fosse, e só os que estivessem parados bestando na areia é que veriam umas nuvenszinhas cinza bradando trovões no horizonte.
Como se não estivesse sub-entendido, que fique claro que o Pai de Amora não voltou do mar.A morte do homem foi uma imensa tristeza em sua família e motivo de muito pesar entre seus companheiros pescadores, mas não se pode usar aqui a palavra "surpresa" para se referir a morte de um pescador no mar. Não que fosse algo recorrente em Santo Mar, que tinha pescadores muito habilidosos, mas também não era incomum. A família do Pai de Amora sempre esteve preparada para se um dia isso acontecesse, e a única coisa mais triste foi o fato do homem ter chegado tão perto da aposentadoria. Isso se resolveu com uma ida do sacerdote até a casa das duas mulheres (O Pai de Amora tinha uma esposa e uma filha, que se chamava Amora), ocasião em que ele disse assim:
-Os designios dos deuses são inescrutáveis, e não foi por acaso que o marido e pai de vocês foi levado tão perto da aposentadoria. Na verdade os deuses agiram sabiamente, pois assim o marido e pai de vocês viveu tempo o bastante para juntar muito dinheiro e não deixar vocês em necessidade, mas também não ficou velho o suficiente para tornar-se um parasita das suas mulheres.
Depois dessas palavras cheias de verdade e sabedoria, ficava sobrando só um último problema: a religião de Santo-Mar dizia que os mortos só alcançavam a salvação se seus corpos fossem devidamente sepultados, e como sepultar alguém que morreu no mar e por ele foi engolido? Claro que em pouco tempo o povo da aldeia deu um jeitinho na religião, já que mortes como a do Pai de Amora não eram raras: enterrava-se, no cemitério próximo ao mar, um caixão vazio que tivesse as medidas do morto, e procedia-se durante o enterro como se o seu corpo estivesse de fato lá dentro. Os homens discursavam, as mulheres pranteavam, etc. Isso era como se fosse um "vale-corpo" para os deuses.
Assim ocorreu com o pai de Amora, que morreu no mar enquanto pensava "Eu cheguei tão perto" e foi "como-que-enterrado" depois de três dias depois de não voltar, quando sua mulher, sua Filha Amora e seus muitos amigos e vizinhos choraram muito diante de um caixão que todos sabiam estar vazio. Depois da terra ser re-colocada em cima do caixão e de uma pedra com o nome do morto ter sido posta ali marcando o local, todos voltaram para as suas casas para retomar as suas tarefas.
As duas mulheres, a Amora e a mãe de Amora, voltaram para o seu luto.
Quando o sol ainda estava alto, a Mãe de Amora fechou todas as cortinas e janelas da casinha onde elas viviam, e acendeu umas poucas velas em cada cômodo.
Enquanto o sol se punha, Amora, que tinha quatorze anos, abriu de fininho uma frestinha na sua janela, queimou um ramo de hortelã e rezou assim:
"Meus Deuses, eu sei que os senhores não acreditam nessa história de caixão vazio como sendo o morto, eu sei que o espírito do meu pai ainda está sofrendo muito lá no mar. Façam o mar trazer o corpo dele de volta, que é pra ele ter paz".
Depois que caiu a noite em Santo Mar, se houvesse alguém ainda no cemitério perto da praia essa veria um estranho vulto se aproximar, correndo pela floresta. Quem é, e o que traz num saco atrás das costas essa sombra que se movimenta com uma rapidez tão desesperada?
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