GELADEIRA
Surpreendi-me com o quão cheio estava o seu carrinho de compras. Ele não se contentava em levar um pote de geléia, tinha que levar logo três. Uma de morango, outra de maracujá e outra de uva. Alface, tomate, cenoura, coca-cola, cerveja, água de coco, sorvete de creme (três potes), maminha, filé, leite condensado, manteiga, chocolate e laranja. Quilos e quilos de comida perecivel, que se acumulavam no carrinho de tal forma que só com muito esforço ele, que já devia ter bem uns setenta anos, conseguia empurrar tudo até o caixa.
Voltei para os meus vinhos. Selecionei dois chilenos que andavam me interessando, um legítimo francês e fui pagar no caixa. Lá, o velho discutia com o atendente.
-Como você aí acha que eu vou conseguir carregar isso tudo até em casa? Sabe lá o que é ter setenta e sete anos, meu filho?
-Perdão, senhor, mas aos domingos não temos serviço de entrega a domicílio.
-Ah, agora eu, que paguei por isso tudo, não vou poder levar pra casa! Mas que absurdo! Desrespeito com os mais velhos!
-Sinceramente, gostaria muito de ajuda-lo, mas não sei como...
-Ah, não sabe como? Pois eu lhe digo como, moleque! Chame aqui o gerente!
Não é que eu estivesse com pressa, mas não queria gastar o meu tempo de ócio ali na fila do super-mercado. Se o gerente viesse, lá se iam dez minutos com as pernas esticadas naquele lugar que cheirava a verdura e coisas congeladas, e não era bem aquilo que eu tinha em mente para o meu domingo.
-Com licença...
-Desrespeito...
-Com licença, eu posso ajuda-lo a levar as compras pro seu apartamento, se o senhor não morar muito longe.
Pensando bem, não sei bem por que fiz aquilo. Não gosto muito de velhos, especialmente aqueles que se vangloriam de sua velhice,como aquele, que ostentava com um certo orgulho a barba mal feita e o nariz ranhento tão característicos dessa idade. O mais constrangedor de tudo foi ver o velho dando uma espécie de lição de moral no atendente, dizendo que eu sim era um jovem que sabia tratar os idosos. Fiquei terrivelmente envergonhado.
Finalmente ganhamos a avenida. Eu, o velho e as cinco sacolas plásticas abarrotadas de comida perecível. Os vinhos eu deixei para buscar depois, dadas as circunstâncias. Como o conteúdo das sacolas tinha acabado de sair do refrigerador, elas suavam. Pingavam no chão e iam fazendo um caminhozinho na calçada quase deserta daquele domingo. Era comida demais para um velho só. Como eu já estava lhe fazendo um favor, não me senti intimidado de perguntar coisas.
-De quanto em quanto tempo o senhor faz compras?
-A cada semana. Geralmente no sábado, mas como meu gato morreu ontem eu tive que vir hoje.
-Isso é comida demais pra uma pessoa só comer em uma semana. Principalmente um velho.
-Você não entende nada.
-Não mesmo.
-Eu sou professor universitário, rapaz.
Professor e velho. Difícil um tipo que pudesse me despertar mais antipatia.
-Professor Olímpio! Artigos pra escrever o tempo todo. Aulas pra preparar! Cartas, teses... É preciso estar com o cérebro sempre ativo e funcionando bem para essas atividades. Sempre! O dia em que eu me sentir menos lúcido do que eu me sentia aos vinte anos eu...
Lá ia minha cabeça longe, nas pernas da mulher que cruzara conosco. Nenhum desrespeito ao velho, era um mecanismo instintivo para que eu não me irritasse ainda mais com ele. Já me arrependia muito do favor que eu estava lhe fazendo. Quando a mulher cruzou a esquina e eu não tive mais saída, não me agüentei e perguntei:
-Mas o que isso tem a ver com esse monte de comida?
-Eu ia chegar lá, eu ia chegar lá...
Sob o sol da manhã, eu, como as sacolas, começara a suar também.
-É que eu adoro abrir a geladeira pra pensar. Acontece com algumas pessoas. Nos momentos em que falta a inspiração, basta que eu abra a geladeira durante uns cinco minutos para que uma idéia logo brote, assumindo forma na fumaça de gelo que sai das prateleiras...
Dessa vez nenhuma mulher passou, é que eu simplesmente não me lembro desse pedaço da fala do velho.
-Depois de mais de trinta anos disso eu descobri que a qualidade das idéias que me vem nessas horas é proporcional a exuberância da geladeira. É por que eu tenho que mantê-la sempre abarrotada de coisas coloridas.
-Pelo bem da ciência.
-É!
-Anh.
Finalmente chegamos a portaria dele. Ele me disse que dali o porteiro assumia. Apertei a sua mão e, com um pouco de pena do porteiro, tomei o rumo de volta ao super mercado para buscar as garrafas de vinho. Eu, que não queria perder dez minutos na fila do super mercado, acabara perdendo uns vinte ouvindo aquele falatório irritante do professor. Enquanto fazia de volta o caminhozinho de pingos que havíamos deixado eu comecei a imaginar o cheiro que deveria ter aquela geladeira. Um monte de coisa devia apodrecer ali dentro, só pra clarear as ideias do velho. Qualquer dia desses ele ia abrir aquela porta e sofrer um envenenamento ou algo do gênero, qualquer um poderia perceber isso. Aliás, o gato dele provavelmente morrera exatamente comendo alguma daquelas coisas podres. Existe muita gente realmente nojenta no mundo.
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um velho germânico! ótimo!
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