Escrevo
pensando em recentes acontecimentos da minha vida pessoal, e em um livro que eu
li também recentemente. Sobre os acontecimentos não cabe ainda comentário, mas
o livro em questão é Eichmann em
Jerusalem, um longo ensaio jornalístico de Hannah Arendt sobre o julgamento
do criminoso nazista Adolf Eichmann, arquiteto do holocausto. O momento chave
do texto, creio, é aquele em que Arendt nos fala dos juízes e do público do
julgamento, que, ávidos e curiosos para ver um “gênio do crime”, ou “uma mente
extraordinariamente maligna”, se deparam na verdade com um burocrata medíocre.
Segundo o Arendt, tudo o que Eichmann foi capaz de dizer em sua defesa passou por
repetir que “seguia ordens”, ou "fazia o mesmo que todos". Incapaz de formular um pensamento por si mesmo, o
responsável pela morte de milhões de judeus apenas repetia as palavras de outros
e citava a todo momento jargões e frases feitas. Muito embora o personagem
clássico do nazista na ficção seja alguém extremamente cruel, frio e sádico, Arendt compreende que a grande maldade do
nazista da realidade é a recusa em pensar por si próprio. Dessas conclusões
a autora cria o conceito de “banalidade do mal”, que eu gosto de pensar que
também pode ser entendido como “mal da banalidade”.
Vejo da
seguinte forma: Pensar que o mal depende de uma mente deturpada, apodrecida,
diferente das comuns é uma forma de, uma vez que sempre nos julgamos “normais”,
nos distanciarmos da possibilidade de nós mesmos praticarmos o mal. Daí a
facilidade com que, ao longo da história, facilmente atribuímos o mal aos mais
diferentes dentre nós, marginais por sua raça, sua renda, sua orientação sexual,
sua saúde, ou mesmo suas opções estéticas. Não é preciso muito para que se
condene alguém que, entre pessoas de terno, use uma roupa não usual. Ou que,
entre professores de determinado saber, ensine algo diferente. Como vivemos em
tempos mais civilizados que o de Hitler, todos se apressarão em dizer que nada
tem contra essa pessoa “diferente”, mas suponhamos um caso fictício, passado
num mundo e numa época exatamente iguais aos nossos, e o meu ponto ficará mais
claro.
Suponhamos um
personagem que seja diferente dos demais, cujo nome seja justamente Diferente.
Imaginemos agora que surja um rumor, ou até mesmo uma denúncia, de que Diferente
tenha cometido um crime. Nesse momento, repentinamente se descortina algo que
antes estava velado: quando acusado, Diferente não terá a mesma presunção de
inocência que os outros, pois antes que os dispositivos legais sejam acionados,
a opinião pública já o terá execrado. Mesmo
Diferente sendo dotado de plenas faculdades físicas e mentais, não será
necessária a sua presença para que ele seja julgado, diagnosticado e nomeado um
crápula. E quem fará isso não será uma entidade sem nome ou rosto, antes o
farão seus pares, agindo como pequenos Eichmanns. Estes se apressarão em
corroborar o discurso comum e colaborar contra Diferente. Não por algum senso
de justiça, mas por que é fácil fazê-lo. Muitos dirão que, embora tenham ficado
quietos e tenham até mesmo sido amigos de Diferente, no fundo sempre souberam
que havia “algo estranho com ele”. Puxarão pela memória até encontrar um fato
qualquer que, agora sob nova luz, parecerá prova cabal de que o Diferente é um
ser perigoso e maligno. Outros, covardes entre os covardes, mesmo compartilhando
da diferença que Diferente possui, serão os primeiros a mudar de lado e
incorporar-se ao coro dos comuns. Fatos que tornem mais provável a culpa de Diferente
virão à tona, e outros que pareçam inocentá-lo serão diminuídos. O que a todo
custo se tentará evitar, claro, será dar voz ao acusado. Num mundo de Eichmanns
que repetem frases feitas e falas prontas, não se pode correr o risco de que Diferente
possua um discurso diferente.
Eventualmente,
embora todos os prognósticos apontem para o contrário, a situação pode
resolver-se de forma favorável a Diferente. O mais provável é que Diferente
seja penalizado, excluído da sociedade e preferivelmente morto, mas também pode
ser que se prove que Diferente não tenha cometido o crime, e sim outra pessoa.
Pode ser, ainda, que se prove que o crime em questão não tenha acontecido, não
passando tudo de uma mentira inventada por alguém. Nesse caso, o mal para de
emanar de Diferente e passa a emanar do mentiroso. Imediatamente a única
suspeita possível para a resposta da pergunta “onde está o mal?” torna-se a
pessoa que inventou o rumor, ou que fez a falsa denúncia. Há os que vão pensar
que essa pessoa sim é o gênio do crime, a mente podre e depravada que o tempo
todo se escondera. São burros os que pensam assim, e estes colaboram para o
estabelecimento de um ciclo vicioso. Não existe a figura do gênio do mal.
Não me
entendam errado. Naturalmente existem coisas como a crueldade e a ambição
desmedida, mas elas não são características de mentes doentes. Se há hospício,
somos nós os dignos dele, como concluiu o famoso alienista de Machado de Assis.
A origem do mal é a mesquinharia cotidiana de cada um, a nossa burrice, nossos
preconceitos, a facilidade com que aderimos a um discurso que pareça
confortável, por absurdo que seja em essência. Por isso elegemos pessoas que
sabemos estarem mentindo, por isso acreditamos em pseudo-cientistas que não
apresentam evidências e por isso contorcemos nossa fé em obediência a sacerdotes
que sabemos não ter fé alguma. Por isso, principalmente, obedecemos quem não
teria o direito de mandar em nós e por isso, diga-se logo, passamos mais tempo
do nosso dia obedecendo do que fazendo qualquer outra coisa. Na pequena
história inventada por mim nesse texto, mas tão real quanto cotidiana, aquele
que inventou um falso rumor sobre Diferente não é mais mal que aquele que
somente disse “eu sempre soube que havia algo estranho”. São ambos indiferentes,
e iguais.
Eichmann.
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